Segundo tese de H.-X. Arquilière (L’Augustinisme politique, Paris, Vrin, 1934), a essência do augustinismo político – isto é, a corrente filosófica e teológica pretensamente baseada nos ensinamentos e escritos de Santo Agostinho – consistiu na absorção da ordem política natural (o trono) pela ordem religiosa sobrenatural (o altar), culminando na teoria da plenitude do poder papal nas coisas temporais, desde Gregório VII (1073-1085) a Bonifácio VIII (1295-1303).
A reivindicação portuguesa
Tal ideia, porém, não é agostiniana. Santo Agostinho (354-430), Bispo de Hipona, nunca advogou a absorção do poder político e temporal do imperador pelo poder religioso e espiritual do papa. Não obstante, tal traição ao seu pensamento teve grande êxito, porque se apresentava com a sua autoridade. Exemplo disso foi a invocação de tal conceção pelo Arcebispo de Braga, D. João Peculiar (n.1100 – 1175), conselheiro real, legitimando a reivindicação do reconhecimento de Portugal como regnum independente e de D. Afonso Henriques como Rex. Tal augustinismo político está bem patente na Carta de Vassalagem ao Papa chamada Claves Regni Coelorum (“As Chaves do Reino dos Céus”), de 13 de dezembro de 1143.
A especificidade do augustinismo político, no caso, consistia no facto de funcionar em dois sentidos e em diferentes escalas. No plano das relações externas, o poder do Papa, tido como Suserano da Cristandade, é reconhecido pelo seu vassalo D. Afonso Henriques como garante legítimo de todo o poder temporal e espiritual (a essência da teoria dos dois gládios de Bernardo de Claraval, também ele conselheiro de Afonso Henriques), interpondo entre si e o Imperador Afonso VII de Leão e Castela essoutro poder mais alto. E, no plano eclesiástico peninsular, o bispo de Braga, D. João Peculiar, pretende o acréscimo da sua auctoritas pessoal e das probabilidades de independência da Sé de Braga face a Toledo e a Compostela, que reclamam aquela como sua sufragânea. Será em 1179 que Alexandre III, um dos papas que mais reivindicou a sua potestas absoluta na Igreja e no mundo, pela Bula Manifestis Probatum, “concede e confirma” Afonso Henriques como Rei e o “seu excelso domínio”, Portugal, como um Reino independente. “E decidimos fazer a mesma concessão a teus herdeiros e, com a ajuda de Deus, prometemos defender-lha, quanto caiba em nosso apostólico ministério.” Roma locuta, causa finita. – Roma falou, caso encerrado.
Desatar os nós de um quadro complexo
Estávamos num quadro de difíceis relações políticas, na Península Ibérica, entre as forças centrífugas que, como Portugal, querem escapar à órbita de Castela/Leão (a primeira referência a um territorium portucalense data de 936) e as forças centrípetas que buscam unificá-la em torno de um Centro cada vez mais forte (nas Cortes de Leão, 4 de Julho de 1135, Afonso VII, foi aclamado como Imperador de “toda a Espanha” ou “de todas as Espanhas”). É nesse contexto que a teoria da plenitude do poder papal nos assuntos temporais (plenitudo potestatis papalis in rebus temporalibus) faculta um quadro de intervenção de uma força exterior, legitimadora e equilibradora, que permitirá, em 1179, o reconhecimento de Portugal como um regnus de jure, para D. Afonso Henriques e os seus descendentes. Com uma grande dose de improbabilidade, aliás, porque ao papa não interessava uma Hispânia dividida na luta contra o infiel, a sul. Mas o tilintar do ouro e a astúcia eclesiástica e diplomática de D. João Peculiar conseguiram alcançar o que parecia inviável. Acresce que a ideia de fazer intervir uma força exterior à Península a fim de regular os conflitos internos e as disputas entre Portugal e Castela/Leão (mais tarde Espanha) permanecerá como constante secular da política externa portuguesa. Apenas a natureza dos ‘papados’ irá mudando ao longo dos séculos.
Por economia de espaço, deixamos de lado o enquadramento histórico anterior a 1143. Menos ainda referiremos o secular processo, na Alta Idade Média, que leva de Agostinho ao augustinismo político. Só nos interessa realçar a sua presença no processo que vai desde a referida Carta de Vassalagem enviada por Afonso Henriques ao Papa Inocêncio II, dia 13 de dezembro de 1143 ― muito simbolicamente intitulada Claves regni coelorum ― até à Bula Manifestis probatum, de 23 de maio de 1179.
Na carta Claves… está presente toda a sagacidade política do grande estratega da independência de Portugal, D. João Peculiar. José Matoso sublinhou bem a importância decisiva deste prelado bracarense, homem culto, bom conhecedor de Santo Agostinho e fundador de Sta. Cruz de Coimbra, em 1131 (cuja Regra agostiniana lhe outorgou em 1134). D. João Peculiar era conhecido em Roma e amigo do legado Pontifício à Conferência de Zamora (dias 4 e 5 de outubro de 1143), o Cardeal Guido de Vico, que o aconselhou sobre o melhor modo de alcançar a independência política de Portugal, e, de caminho, manter a independência da Sé de Braga e afirmar-se como Bispo Primaz das sufragâneas (Porto, Lamego e Coimbra) e de todas as outras a reconquistar a sul.
O vínculo direto ao Papa
É a conselho deste hábil eclesiástico que D. Afonso Henriques, “a 13 de dezembro deste ano [1143], (…) se dirige ao papa declarando (…) que tinha feito homenagem à Sé Apostólica nas mãos do Cardeal Guido de Vico, como cavaleiro de São Pedro, se obrigara a pagar o censo anual de quatro onças de outro [elemosina Sancti Petri], sob condição de o papa defender a honra e a dignidade dele e da sua ‘terra’, e afirmando que não reconhecia autoridade de nenhum outro poder eclesiástico ou secular a não ser o do papa.» (J. Mattoso, História de Portugal, Vol. 2, Círculo de Leitores, p. 72) Isto, apesar de Afonso Henriques, rei de Portugal, ter assinado o Tratado de Zamora apenas dois meses antes (no dia 5 de outubro de 1143) e dos laços de vassalagem que o sujeitavam ao Imperador Afonso VII de Leão (devido ao Senhorio de Astorga, do qual, contudo, nunca chegou a tomar posse).
Reza assim o começo da Carta: “Sabendo que a São Pedro foram concedidas por Nosso Senhor as Chaves do reino do céu, decidi tomar o mesmo Apóstolo como Padroeiro e Advogado para que nas dificuldades da vida presente possa experimentar seu auxílio e conselho e pelos seus méritos venha a alcançar os prémios da eterna bem-aventurança.” À cabeça do gesto vassálico, o símbolo das chaves de S. Pedro e o reconhecimento inequívoco de que o Papa tem o poder de tudo ligar e desligar no céu e na terra (Mt 16, 19). Explicitamente, Afonso Henriques reconhece o poder do Papa nas coisas terrenas ― auxílio e conselho nas dificuldades da vida presente ― e liga este poder diretamente à intercessão do Papa para os prémios da vida eterna, i.e., para a salvação da alma. Eis que estão aqui presentes os dois elementos essenciais do dito augustinismo político: o Papa detém simultaneamente o poder sagrado e espiritual (potestas ordinis), mediante a cruz, e o poder temporal e terreno (potestas temporalis et jurisdictio), mediante a espada, podendo dispensar esta a quem achar mais digno (dispensatio coelestis). Note-se que Bernardo de Claraval (teorizador dos dois gládios na obra De Consideratione ad Eugenium papam) se correspondeu com Afonso Henriques. Segundo alguns, terá tido alguma influência na vinda de Guido de Vico à Península e, por essa via, também influxo no Ato de Vassalagem e ainda no próprio casamento de Afonso Henriques (em 1146) com alguém fora do quadro peninsular: D. Mafalda de Sabóia, filha de Amadeu de Sabóia.
Ora, Afonso Henriques, logo a seguir, de modo a firmar a continuidade de tal sujeição vassálica, compromete-se a pagar o respectivo tributo anual de quatro onças de ouro e a providenciar para que os seus sucessores façam o mesmo. Pode dizer-se que, com este gesto, Afonso Henriques definiu um ― se não mesmo o ― dos vectores mais constantes da política externa portuguesa face ao centro político peninsular: interpor entre si e o Imperador Afonso VII um poder exterior e superior, no caso o poder Papal. Ou seja, o poder religioso vigente na Christianitas medieval na Europa.
Com o mesmo gesto, Afonso Henriques garantia a independência política, libertando-se da tutela leonesa; ficava com as costas defendidas para lutar contra o mouro, uma vez que o Papa dizia, preto no branco, que aos “lugares que com o auxílio da graça celeste arrancares às mãos dos sarracenos (…) não podem reivindicar direitos os vizinhos príncipes cristãos”, ou seja, concede-lhe o tão desejado Direito de Conquista (e Indulgência de Cruzada). E acalentava, em simultâneo, as esperanças a D. João Peculiar de se poder tornar no Primaz de Braga. O augustinismo político pode funcionar em dois sentidos: tanto sacraliza o poder, como politiza a religião. As hesitações que se seguem até 1179 provam-no bem. Mas isso exige um espaço que, aqui, hoje, já não temos. Fica para outra oportunidade.