Um amigo de infância, em conversa nos jardins da Gulbenkian, confidenciou que achava que os artistas e os investigadores científicos não eram essenciais. Usou palavras para descrever quem escolheu tais profissões como inúteis, imaturos, irrelevantes. O amigo em questão está no seminário a estudar para ser ordenado sacerdote (fica ao critério do leitor se isso é irônico ou não). Confesso  que lhe dei razão no imediato; há que aproveitar os momentos com os amigos e tenho tendência a não discutir aos Domingos de manhã. O hábito faz o monge. Mas fiquei a pensar no assunto. Teria ele razão ou seria tudo um complot para evitar responder-me ao porquê de ainda não ser diácono?

A NASA tem a capacidade de detectar asteroides em possíveis rotas de colisão com o planeta terra. Foi o investimento passado que agora todas as noites nos dá segurança. Várias vezes li ou ouvi comentários sobre o quão desnecessário são os milhões gastos por Elon Musk na SpaceX com o objetivo de construir rockets reusáveis e eventualmente concretizar a chegada e estabelecimento de colônias humanas no planeta Marte. O abrir de fronteiras habitacionais ao ser humano e a exploração de novos territórios e modos de viver pode revelar-se essencial num futuro próximo ou distante. Adicionalmente, a possibilidade tecnológica dos rockets reusáveis também terá impacto na futura exploração de asteroides para mineração de metais e água-gelo. O impacto colateral da investigação científica numa área frequentemente não é imediatamente previsível.

Muitos também diriam que seria inútil investir em projetos de conservação do lince ibérico iniciados mais de uma década atrás. O pensamento de longo termo importa. Frequentemente parece que os resultados nunca chegam. No entanto, hoje o lince já não é considerado como em vias de extinção, estando na categoria de espécie vulnerável. O brilhantismo deste programa científico de recuperação da biodiversidade só foi possível sem imediatismos. A ferramenta de edição genética CRISPR-Cas9 é o produto de décadas de pesquisa sobre os mecanismos de defesa bacterianos e múltiplas técnicas de biologia molecular. Em 2020 esta tecnologia ganhou o prémio Nobel da química (Emanuelle Charpentier /Jennifer Doudna) e em 2024 já é usada para o tratamento de doenças hereditárias. A aspirina que hoje tomamos por garantida, desenvolveu-se no seu formato corrente através de sucessivos refinamentos que remontam aos tempos do antigo Egito . E foi tendo modificações que a tornaram mais efetiva e seletiva. Ao investirmos em 2024 em ciência, estamos também a pagar pela ciência que tomamos por garantida. Podemos ver este investimento como pagarmos o café a quem nos pagou o chá ontem.

E a arte? As distintas descrições visuais  do pintor Canaletto (Museu Nacional da Escócia e Galeria Nacional em Londres) da Piazza San Marco comunicam ao visitante sobre o ambiente, os eventos e as modas de Veneza no século XVIII. A coluna de Trajano erecta em 113 DC em Roma informa-nos sobre a  as guerras Dácias e a conquista de uma nova  região pelas legiões do Imperador Trajano; o equipamento militar, as armaduras e capacetes usados pelos dois exércitos. A missão educativa da arte não é de somenos importância, sem retirar nada ao simples prazer estético que a pintura e a arquitectura oferecem. A arte é trabalho, e infelizmente pouco valorizada.

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Ciência e arte partilham no método a criatividade e poder de observação, e potenciam-se uma à outra. Os avanços no desenvolvimento de materiais na indústria de impressão 3D, com o aparecimento de novos materiais com novas propriedades de resistência a temperaturas elevadas, flexibilidade, transparência e luminosidade, providenciam o artista com novas formas de expressar os seus conceitos. Os padrões de disparo neuronal observado em experiências de electrofisiologia podem ser captados pelo artista para a produção de composições musicais originais. Ou, usando bioinformática, retratar um tubarão com recurso apenas a linhas de código e  padrões de expressão de genes nos neurônios do cerebelo do tubarão martelo. Em troca, um quadro de Canaletto, convida o observador (e entre eles, muitos são cientistas) a tomar atenção ao detalhe, explorar as várias camadas de sentido e ângulos de visualização. A arte tem assim of efeito de inspirar.  O grande cliché na comunicação das mais recentes descobertas na área da neurociência escrita para o leitor leigo inclui frequentes referências aos trabalhos do escritor francês Marcel Proust, realçando as suas observações sobre a natureza das memórias e da sinestesia, facilitando a explicação de conceitos científicos complexos. Já poderia fazer parte do CV oficial de todos os neurocientistas ler Em Busca do Tempo Perdido.

Com Itália como pano de fundo , o livro Don Camillo e o Seu Pequeno Mundo de Giovanni Guareschi, retrata humoristicamente as desavenças de um padre católico (Don Camillo) e o presidente da câmara comunista (Peppone). Sendo eu canhoto de mão, mas não de mente, seria facil dividir o mundo entre esquerda e direita e que nunca os nossos caminhos se cruzassem.Este livro demonstra e educa que podemos discordar intensamente e ao fim do dia partirmos pão juntos.Qualquer livro escrito por GK Chesterton ou Virginia Woolf sempre me acompanhou nos minutos vagos entre tempos de espera no laboratório. A diferença entre parar pelas cinco da tarde ou ficar até às onze da noite foi muitas vezes a companhia da arte literária. Nem tudo dado pela arte são rosas. Sempre que ouço a música Imagine de John Lennon cantada por uma multiplicidade de celebridades fico petrificado de terror apocalíptico. O meu sistema auditivo não evoluiu para isto. Mas para algumas pessoas esta música inspira actos generosos e de solidariedade. E isso tem valor moral. Há que respeitar, mas com tampões auriculares.

Arte e ciência vivem muitas vezes no Futuro. O pianista que mentalmente explora uma nova composição musical, vive num espaço tentativo que ainda não existe. O cientista, sentado no seu banco de laboratório, enquanto espera pelo próximo passo experimental de imunoquímica, recolhe os pensamentos de todos os artigos que leu e formula uma hipótese, projecta-se no futuro, explorando possíveis caminhos de investigação e realidade.

Claro que muita arte não tem propriamente nenhuma destas características (criatividade, observação, futurismo, educacional): a banana presa com fita adesiva em Art Basel (Miami, EUA) tem tanto de arte como um estudo sobre cães de Nova Iorque serem homofóbicos tem de ciência. Mas não atiremos fora prematuramente o dinossauro com o asteroide. Que alguma mente pioneira junte bananas e cães homofóbicos e publique uma novela risqué de sotaque Miller-esco já poderia ser outra coisa. Proust já cansa, os neurocientistas precisam de novas inspirações.

O cinismo Maugham-iano do meu querido Don Camillo parece-me assim fora do lugar. A ciência e a arte podem não parecer imediatamente essenciais e produtivas. No entanto, não só estão as duas entrelaçadas fortemente por cadeias de método e aspiração, estão presentes no mundo que habitamos e têm uma influência póstuma excepcional. Percebo perfeitamente o impulso de se considerar tais profissões pouco relevantes e de facto às vezes talvez na ciência e na arte nos demos demasiada importância. Em lugar de inúteis, imaturos e irrelevantes penso serem mais adequadas as palavras inventivos, incansáveis, irrequietos. Espero assim ter deixado aqui uma perspectiva que motive uma maior valorização da investigação científica e das artes (performativas, cinemáticas, literárias, etc) em Portugal. Se conseguir convencer pelo menos um leitor ficarei contente.