A redação de um texto que aponte para o nosso futuro enfrenta desde logo duas questões difíceis: quão longínquo é o futuro em que me devo centrar? E devo falar do futuro que desejo ou do futuro que antecipo?

Por outro lado, num mundo cada vez mais interligado, quase nada de muito relevante acontecerá imune a conflitos, pressões, tendências ou outros elementos vindos de fora, ora de fora mais longe de nós, ora de fora no contexto das nossas alianças e dos nossos parceiros.

Há alguns anos, organizámos na Fundação Champalimaud uma conferência em torno do que seria o mundo e o nosso país dentro de cem anos. Pode parecer uma eternidade, mas basicamente anda pela esperança de vida daqueles que estão agora a nascer. Se faz sentido pensar que vida viverão aqueles que agora estão a chegar, é verdade que estamos sobretudo habituados a pensar no que nos está próximo e a esperar modificações a todo o tempo.

Tentarei centrar-me na próxima década, a segunda da vida do Observador, e imaginar que possa haver uma moderada vontade nacional de transformar, com o esforço correspondente.

Em qualquer circunstância, não é possível ignorar o entorno externo da nossa realidade. Esse entorno não se limita a fatores de competitividade ou a mais ou menos limites à capacidade produtiva. Começa, e agora domina, nos riscos para a nossa segurança que vêm do exterior. Temos de enfrentar o que fazemos de conta que só se passa longe. E, antes de estarmos entalados entre Putin e Trump, precisamos de, com os nossos aliados, reforçar compromissos.

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A questão não é apenas relacionada com o nível de investimento. Serão necessárias também novas práticas de partilha de esforços e de regras na Europa. Vejo que isso começa a ser feito no quadro da União Europeia. Espero que se enquadre na NATO, englobando nomeadamente o Reino Unido, com o qual todas as razões são boas para nos mantermos amigos e parceiros.

Já agora, é bom relembrar um ponto: são várias as áreas em que se reclama para investimento uma maior fatia da riqueza nacional. Cumprir as regras em defesa significa deixar menos para as outras…

As guerras e as ameaças influenciam também a escassez de bens e de materiais, bem como, claro, a evolução dos preços. E, particularmente importante, a crise climática exige comportamentos que custam em meios financeiros e em alteração de hábitos enraizados.

O quadro nacional também não é risonho em múltiplas áreas. O esforço de recuperação, durante e na sequência da intervenção externa, tendo embora tido sucesso no que respeita à nossa respeitabilidade nos mercados financeiros, deixou-nos mais pobres nos rendimentos das pessoas e no controle da riqueza nacional.

Conhecemos austeridade ao longo de infindáveis doze anos. Primeiro, foi a austeridade centrada em salários e em pensões – nos termos do acordo negociado em 2011 com a “troika”, e até esta se ter ido embora. Depois, tem sido a austeridade nos investimentos públicos, disfarçada em “cativações” e num férreo controle da despesa, durante os três últimos governos – apesar dos milhões em dívida pública que o Banco de Portugal pôde comprar desde 2015 e dos milhões do PRR. A primeira austeridade atingia diretamente o rendimento de cada um; a segunda empobrece-nos também pela dificuldade de acesso à saúde, à educação e a tudo o que é financiado pelo Estado.

Ninguém nos explicou que ficaríamos mais pobres depois do processo de intervenção externa. Vimos outros recuperar muito mais rapidamente. E ficamos muito desmoralizados quando tantos que chegaram bem mais tarde à democracia e à União Europeia nos vão sucessivamente ultrapassando. Temos a sensação de que há um quadro geral de falhas de que será muito difícil sair.

Aquilo que me parece indispensável, e que espero aconteça nos próximos anos, pode ser sintetizado assim: derrotar as nossas próprias incapacidades, reconstruirmo-nos em torno da ideia de que somos tão bons como todos os outros, e de que, como outros já fizeram, podemos alcançar em pouco tempo uma sociedade mais próspera e mais solidária. Isso supõe uma nova e geral atitude de ambição, a determinação de identificar obstáculos e a coragem de os ultrapassar.

E tem de levar, a meu ver, a uma menor dependência do Estado, uma menor dependência de cliques partidárias, uma capacidade nova de escolhermos os melhores e de adotarmos as regras certas.

Não sou economista e não me arriscarei no desenho de cenários. Mas sei que escolhas mais certas, e mais estáveis, nos podem conduzir a mais produtividade, a maior atratividade no investimento interno e externo, e que, sem isso, prosseguiremos num caminho triste de resignação.

Tivemos há pouco tempo um período eleitoral. Por isso estamos mais conscientes de como é difícil fazer escolhas em torno de ideias exigentes e viradas para o futuro, em vez de cedermos a tranquilizar os que só querem garantir o que já têm. De uma forma um pouco cruel: centramo-nos no que já há, ou tentamos conquistar o que nos falta? Há questões geracionais em causa. Como conciliamos uma coisa e a outra?

Quando não podemos fazer tudo porque os meios são sempre escassos, temos de fazer opções. A minha é pelo futuro. Por um país que possamos legar sem vergonha aos nossos filhos e aos nossos netos.

Não tenho dúvidas de que esse país deverá apostar mais na iniciativa privada no setor produtivo e no setor social. Deixará os cidadãos terem mais liberdade de escolha. Deixá-los-á também arriscar mais. Estará lá para os proteger, também, selecionando cuidadosamente os casos em que deve intervir ou em que deve deixar a sociedade encontrar e gerir soluções.

A eliminação da pobreza é um objetivo primordial. Mas tem duas grandes componentes, intelectualmente distintas: construir uma sociedade com regras que favoreçam a criação de riqueza por um lado, ou acudir a situações de ameaça ou instalação de pobreza, pelo outro.

Um país equilibrado, diria moderado ou centrista na conceção básica da organização da sociedade, cultiva uma coisa e a outra. Primeiro, organiza-se de forma a que os cidadãos sejam levados a criar e a atuar gerando empresas e postos de trabalho, arbitrando equitativamente as relações entre quem dá e quem presta trabalho, criando regras e mecanismos que conduzam os cidadãos a observar as regras e a poder reagir às suas violações. E depois reconhece que haverá sempre quem não saiba, ou não possa, aproveitar as oportunidades, e criará mecanismos de proteção para os que dela precisam.

O equilíbrio entre uma linha de atuação e a outra caracteriza a meu ver o que eu considero justiça numa sociedade. Uma coisa sem a outra conduz a desequilíbrios – e ao agravamento da pobreza coletiva. Uma sociedade que não crie riqueza arrisca o empobrecimento de todos. Uma sociedade que não proteja os fracos conduz ao agravamento intolerável das diferenças.

A busca de equilíbrio é o objetivo mais nobre e difícil da arte de governar e de fazer escolhas. Entre nivelar por baixo ou tentar nivelar por cima, esta última é sempre a minha escolha.

Muitas vezes, as políticas certas levam tempo a obter resultados. E precisam de estabilidade na sua aplicação. Não temos sido capazes de esperar os resultados, nem de aguentar as grandes linhas de atuação. Com cada governo novo mudamos as regras na educação, e em cada ano revemos o quadro geral dos impostos. São erros que nos ficam caros.

Permito-me algumas considerações ainda.

A educação é o meu setor prioritário – e precisa de ser mais exigente. Um país de cidadãos educados será sempre mais próspero. A educação como política pública tem de começar o mais cedo possível — o pré escolar é comprovadamente fator de promoção da igualdade. É preciso integrar de forma harmoniosa no sistema educativo os filhos dos imigrantes. E é essencial velar pela adequada inserção familiar de todas as crianças.

Na saúde, são determinantes a prevenção e a proteção da infância e da maternidade. A ciência é uma escolha indispensável – e a ciência fundamental também.

Um país capaz aposta no mérito de cada um. Não tolera a partidarite na escolha das pessoas. Precisa de uma Administração Pública forte e independente, incluindo os seus dirigentes máximos.

A igualdade de oportunidades deve estar inscrita no desenho das políticas. É preciso estabilidade de políticas públicas, mesmo quando há mudança de governos. A administração pública precisa de um choque de boa gestão e de desburocratização, que não está ligado à realização de despesas – mas é essencial à satisfação dos direitos dos cidadãos.

Só mais uma observação. Quando se divide a política entre a “direita” e a “esquerda”, tenho sempre a sensação de que se está a hierarquizar. Não teremos outra maneira de dizer as coisas?

A meu ver, é mais correto distinguir entre moderados e radicais. E aí aprecio a hierarquização.

Eu sou radicalmente uma moderada, e ainda deposito expetativas na colaboração entre os moderados.

Leonor Beleza é jurista e foi ministra da saúde durante vários anos. É atualmente presidente da Fundação Champalimaud. É membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década