Nacionalizações, por favor, não
O Governo pretende sustentar a economia tomando posições nas empresas? Mais devagar por favor: nacionalizações de 1975, expansão das empresas após serem privatizadas (ainda que, por permissividade nossa, com grandes perdas de centros de decisão), resoluções bancárias e intervenções subsequentes (BPN e BES, de um lado e, depois, Novo Banco, por outro), hesitações na TAP, são (“bons”) exemplos de que usualmente o Estado não é um bom acionista.
Além disso, e depois desta crise provocada pelo Covid-19, o dinheiro dos contribuintes vai ser ainda mais escasso e “custou muito a ganhar a muita gente”. Mais: a dimensão da crise, a sua natureza global, o efeito nas quebras simultâneas da procura e da oferta, a diminuição das receitas fiscais e o também simultâneo aumento das despesas públicas, obriga a uma intervenção precoce, certeira, mas low cost.
Por isso, se o Ministério da Economia terá de reconhecer, como aparentemente já concedeu, que o Ministério das Finanças não vai permitir uma bazuca fiscal (como agora se diz, o que em décadas anteriores também era conhecido por choque fiscal), terá de convencer o Ministério das Finanças (e a Comissão Europeia) de que vale (muito) a pena “prescindir” de receitas fiscais que nunca teria (ainda se lembram da Curva de Laffer?), concedendo créditos fiscais dirigidos à retoma.
E estes créditos podem viabilizar as empresas e a economia, sem nacionalizações e com garantias de accountability, imparcialidade e racionais decisões de gestão (skin in the game).
Mas há novas oportunidades, mesmo
Mas a crise colossal que acabou de se iniciar e o idêntico aumento de impostos, que ainda não (re)começou (agora começando de uma base muito mais alta), podem ter efeitos positivos, por muito paradoxal que isso possa parecer.
As cadeias de valor vão encurtar-se (geográfica e corporativamente). Isto significa que muita produção retornará à Europa, por razões de autonomia e segurança estratégicas. Dito de outro modo, è muito provável que à globalização se siga uma “eurolização” acelerada. As grandes cadeias mundiais de produção e logística vão procurar unidades “regionais” para subcontratação (encurtamento geográfico da cadeia, com opção pelo “nearshoring”, no caso “euroshoring”, nos centros industriais europeus) e mesmo investimento direto greenfield ou brownfield em locais de produção a custos controlados (encurtamento corporativo da cadeias por (re)internalização de funções).
Sabemos do passado que temos vantagens e desvantagens neste plausível cenário. Do lado das desvantagens: não temos massa crítica (desde logo, nos agentes económicos), não temos capital e por isso não temos indústria pesada, não temos mercado, nem proximidade geográfica aos mesmos e concorremos com o leste europeu que tem tudo isso (sendo a República Checa o exemplo mais marcante, pois quanto à Polónia estamos conversados).
Mas temos vantagens. Muita matéria prima e dos produtos semi acabados serão oriundos não da Europa mas do Atlântico Sul (e é bom que assim seja, para fomentar o desenvolvimento das áreas de proximidade), para os quais somos o primeiro porto de entrada na União. E com a previsível limitação do transporte rodoviário de longa distância, teremos excelentes condições de transporte dos produtos transformados por cabotagem marítima, mesmo sem a ferrovia. E com uma infraestrutura aeroportuária em Beja pronta e não utilizada, dificilmente teremos dificuldades em complementar a logística de transporte.
Tudo isto aponta para voltar aos objetivos PEDIP, suspensos com a globalização e o sonho da economia assente apenas nas rendas e nos serviços.
Como usualmente, somos confrontados com a necessidade, mas também a oportunidade, de mudar para um novo paradigma, precisamente no momento em que há menos dinheiro para concretizar essa evolução estritamente necessária (como em Angola, um País tão próximo de nós em tantos aspetos e até neste, de só mudar por força da pressão externa).
Com não desperdiçar esta oportunidade, de novo …
Temos sido consistentes em colecionar oportunidades perdidas. Sob pena de não perdermos mais duas gerações, é imperioso agarrar agora esta oportunidade (outro dos significados de “crise” em mandarim, uma expressão tão batida em 2011, como muitos se lembrarão).
É aqui que, a par de muitos outros que devem ser alinhados no mesmo sentido, entra o instrumento fiscal. Ainda que disso haja imperiosa necessidade, realisticamente, não há capacidade de trazer um choque fiscal até nós. Não foi possível na crise da década anterior, não o quisemos na precedente e também não será nesta que o conseguiremos.
É necessário portanto ser seletivo e conseguir o buy in de dois stakeholders fundamentais – Comissão Europeia, por causa das ajudas de estado; Ministério das Finanças, por mais uma frase batida: “O que não está ainda percebido? Não há dinheiro, ponto!”).
O primeiro deverá ser agora mais fácil, pois estamos em período de graça, no qual a alternativa, não desejada por ninguém, seria a de exacerbar o confronto Norte / Sul. O segundo, sempre difícil, poderá ser conseguido pelo redesenho do sistema (reforço dos impostos indiretos, sempre os mesmos) e pela expetativa de que os créditos de hoje não sejam despesa fiscal em sentido estrito (Laffer, atração de investimento e manutenção da existência – literalmente – de muitos sujeitos passivos) e venham ainda a dar lugar a maior receita fiscal real no futuro (mas ainda na legislatura), pelo alargamento das bases tributáveis em virtude do aumento dos resultados das empresas. Se a isto juntarmos a redução do exponencial incremento da despesa social (e reversão de receitas fiscais pelos reembolsos de IVA e pelo aumento de imparidades, em virtude do aumento crédito incobrável – eles próprios com um grande “R”, também para a Banca, apesar da “suspensão” conveniente das imparidades bancárias por reais incidentes de crédito), os Ministérios das Finanças e da Segurança Social só podem ficar facilmente convencidos.
Por fim, a necessidade de ser pragmático, célere e de não cair no experimentalismo fiscal, aconselham a “reciclar” instrumentos bem conhecidos do passado e com provas dadas. Já mencionei, por diversas, vezes o aumento da intensidade de RCCS, RFAI, DLRR e Super-CFI, assim como da segurança à aplicação dos regimes de apoios à concentração (estes, sem custos na receita).
Hoje, queria focar-me no que entendo dever ser um instrumento essencial para conseguir vários objetivos em simultâneo: turn around de empresas de outro modo condenadas, sua capitalização e concentração do tecido industrial, expansão do output industrial transacionável que gere níveis elevados de emprego, valor acrescentado nacional e rentabilidade.
Um SIFIDE para a reconversão industrial portuguesa (um SIFRIP?)
O SIFIDE II (agora prorrogado) oferece, já hoje, um incentivo muito usado de créditos fiscais por investimentos em unidades de fundos de investimento vocacionados para aplicações em projetos de investigação e desenvolvimento (I&D). Naturalmente a I&D é, e continuará a ser, fundamental.
Mas no contexto atual de alteração do paradigma das cadeias de valor, a base tecnológica a que ambicionamos pode e deve ser complementada com uma base industrial forte, desde logo pela manutenção da escassa indústria existente entre nós. Captar capitais para esse objetivo é, por isso, fundamental para que desta vez não deixemos fugir a possibilidade de nos reinventarmos e ganharmos relevância e posicionamento estratégico.
E como o SIFIDE está já montado, pequenos ajustamentos pragmáticos, sem previsíveis complexidades técnicas de maior, permitirão ter o instrumento operacional no curtíssimo prazo (um Sistema de Incentivos Financeiros à Regeneração Industrial Portuguesa).
Créditos fiscais
O SIFIDE atribui créditos fiscais (32,5% do investimento base, com limite absoluto, e 50% pelo investimento incremental) por investimentos em fundos de investimento vocacionados para I&D.
Se for acrescentada uma nova alínea ao Código Fiscal do Investimento, similar à que contém os incentivos existentes para o I&D, mas agora dirigida a investimentos em fundos vocacionados à reconversão, regeneração e concentração industriais, a parte mais delicada do trabalho estaria já concluída.
Para isso, bastaria definir com cuidado os ativos que qualifiquem para o incentivo a deter por fundos de investimento: aquisição e detenção (em percentagem relevante do seu ativo) de posições (de equity ou de dívida, participante ou convertível) em empresas em stress económico ou financeiro mas com viabilidade económica (em termos a definir, por exemplo, com PER iniciado, ou que cumpram um dos critérios do layoff simplificado, ou que estejam no quadro do art. 35º do CSC), mas com viabilidade económica (igualmente a definir e mais uma vez a título ilustrativo, com resultados positivos num determinado número mínimo de exercícios económicos de um dado período temporal, ou com uma percentagem mínima de EBITDA, melhor EBIT, sobre as vendas, ou com tecnologia própria, ou com encomendas sinalizadas, etc.) ou em alternativa com intenção firme de consolidação com outras empresas (por exemplo por aquisição, fusão, build up, criação de filiais comuns ou ainda mediante ACE’s, AEIE’s ou outras joint ventures de produção ou de distribuição).
Tal como hoje, as unidades de participação teriam de ser mantidas por um número mínimo de anos e os fundos teriam de garantir a realização e consistência dos investimentos relevantes.
Sabendo-se porém que o valor dos prejuízos fiscais de muitas empresas será grande, estes créditos fiscais deverão estar disponíveis também para pessoas singulares, permitindo a sua dedução ao IRS calculado (sem distinção, portanto, de categorias de rendimento), tal como hoje ocorre para investimentos em start up inovadoras, mas com uma materialidade muito mais relevante.
Ainda assim o Estado é bem vindo, pela mão da IFD
Para ganhar escala e sabendo-se da escassez crónica de capitais de famílias e empresas em Portugal, a Instituição Financeira de Desenvolvimento (sim, existe) deveria obter fundos das suas congéneres e, conjugado com fundos seus, significativamente reforçados, deveria colocar “poder de fogo” à disposição dos fundos de investimento, em regime de co-investimento, minoritário, desenhado à semelhança do programa “200M” de aceleração de start ups e empreendedorismo.
Sendo investimento não é despesa e, muito provavelmente, terá um retorno positivo, a somar aos das receitas fiscais incrementais.
Para tornar o mecanismo interessante também para o investimento estrangeiro privado, os investidores não residentes deveriam poder transacionar a favor de empresas nacionais, os créditos fiscais decorrentes de investimentos em unidades de participação.
Regulamentação adicional leve
Do lado regulatório não parece necessário proceder à criação de novas tipologias de fundos.
Seria eventualmente possível, por clareza, estabelecer que a atividade acima descrita corresponderá ao escopo principal do fundo, como requisito de acesso aos incentivos, acrescentando que todos os ativos referidos acima são ativos relevantes e possíveis para a carteira do fundo.
Paralelamente e apenas por opção de marketing ou de visibilidade, poderia pensar-se na criação de uma nova tipologia (mas, substancialmente, idêntica às demais), com uma denominação alusiva ao propósito de revitalização industrial numa fase pós confinamento e de adaptação a um novo normal, também nos circuitos de aprovisionamento, produção e distribuição.
Um tecido industrial resiliente em função da crise
As empresas vão ter dificuldades tremendas para retomarem a atividade, para se capitalizarem (e caso se endividem, de sobreviverem ao futuro serviço da dívida, passando esse problema à Banca, desta ao Fundo de Resolução e deste, de novo, aos contribuintes), assim como terão dificuldades enormes para capturarem as oportunidades da alteração industrial em curso com a “eurolização” da cadeia de valor.
São pois necessários instrumentos de capitalização e de consolidação, assente em claros “racionais de mercado” (garantidos por indicadores de viabilidade pela estratégia skin in the game, obrigando a que se coloque a voz onde se coloca o dinheiro) para a identificação das empresas moribundas mas recicláveis.
E o Estado, por outro lado, não teria poder de fogo suficiente e colocar-se-ia num inevitável atoleiro de conflitos de interesses e discutíveis opções, a colocarem ruído na praça pública.
A proposta é simples e, aparentemente, viável e eficaz. Haverá vontade e capacidade de a implementar com o sentido de urgência que a situação impõe?
Jaime Carvalho Esteves
Advogado www.jaimecarvalhoesteves.com