Tradicionalmente sub-financiado, o sector cultural atravessa agora um agravar profundo daquela que era já antes uma existência precária. Confesso que, infelizmente, não me surpreende. E não o digo por conhecer a realidade por dentro. Digo-o, sobretudo, por conhecer a realidade cá fora. Para lá da Cultura, cultura escreve-se com minúscula. E é aí que, quanto a mim, começa o problema.

No passado dia 29 de Abril, Dia Mundial da Dança, num longo artigo no Público, Tiago Guedes, actual Director Artístico do Teatro Municipal do Porto, descreveu as dores vivas de um sector que, percebe-se, começou esta crise já em crise. Dias antes, um largo conjunto de estruturas representativas do sector haviam reunido para, numa só voz, pressionarem o Estado a criar medidas para o presente, em urgência, e lançar as bases para uma (nova) política cultural, de futuro. Trata-se de duas manifestações que militam num coro encorpado pró-Cultura, que, à medida que a crise alonga e adensa, se tem juntado em seu socorro. Mas são, além do mais, duas manifestações que reflectem a questão em dimensões distintas e complementares. Por um lado, Tiago Guedes traça, muito particularmente, o retrato duro e cruel do trabalhador do sector independente das artes do espectáculo, não se abstendo de, amiúde, sugerir propostas concretas. Por outro, na diversidade de estruturas que se uniram para reclamar por medidas urgentes, entende-se a real extensão do problema: não é apenas de uma crise de artistas que falamos; é de uma crise de um amplo ecossistema multidisciplinar.

Ainda que de acordo com a generalidade das posições, sou da opinião, contudo, que a discussão começa um capítulo depois do que devia. Isto porque os argumentos partem do princípio que o público, no geral, entende a importância social e humana da actividade artístico-cultural. E esse pressuposto não é evidente. Tanto mais que, entre os dois partidos políticos que, nas últimas décadas, têm alternado a preferência do voto português, a Cultura senta-se em mesas diferentes: ora é Secretaria de Estado, ora é Ministério. Quando o tema é Cultura, não existe uma unanimidade primária. E essa falta é sobretudo lesiva para a própria ideia de Cultura.

A Cultura geral antes da Cultura particular

Quando olhamos para a velha pirâmide de Abraham Maslow, aquela que se propunha organizar a hierarquia das necessidades humanas, dita a lógica que a Cultura deve ser arrumada no topo. Afinal, é no topo que se encontram as aspirações últimas do ser humano. Aquelas que Maslow considerou rematarem a realização pessoal.

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Esta disposição é coincidente com a aura transcendental que reconhecemos na arte. E, em certa medida, é coincidente com o preconceito que remete a Cultura para o patamar de capricho de uma elite livre das amarras da existência mundana.

Mais do que um retrato fiel da realidade, a organização hierárquica de Maslow é, sobretudo, um modelo hábil para compreender como, em piloto automático, o ser humano organiza as suas prioridades. E, dessa forma, ajuda a explicar a fragilidade de afirmação do valor da Cultura: afinal, quanto mais longe da base e das necessidades básicas, menos essencial.

O problema da excessiva simplificação, adivinha-se, é o facto de levantar problemas à afirmação de domínios que, como a Cultura, têm efeitos maioritariamente elusivos. É verdade que a urgência das necessidades básicas tende a ter precedência sobre os desejos e aspirações superiores. A saúde, ou a segurança, tende a vir antes do entretenimento. Porém, entre outras imperfeições, a lógica de Maslow ignora grosseiramente o facto de muitas aspirações remetidas para o topo da pirâmide serem, na verdade, mecanismos imprescindíveis na garantia ou na conquista das necessidades da base. Pensemos, por exemplo, nas relações sociais que o psicólogo norte-americano colocou algures a meio da pirâmide: sem elas, o ser humano teria graves dificuldades em assegurar muitas das necessidades fisiológicas básicas. Portanto, mais do que um desejo secundário, como a hierarquia de Maslow sugere, as relações sociais são, com efeito, imprescindíveis à sobrevivência e ao desenvolvimento humanos.

De forma semelhante, além da fruição imediata, o verdadeiro valor da Cultura está na sua vocação construtiva. Uma vocação particular, capaz de fomentar o espírito crítico e a iniciativa individual, de promover o debate e o desenvolvimento intelectual, de ajudar a projectar futuros. No fundo, de contribuir para uma sociedade mais próspera. E, para os mais desconfiados, um universo de argumentos atraentes — que vão da biologia evolutiva à filosofia, da psicologia à economia — assim o confirma.

Ora, antes de qualquer pretensão particular, estes são os argumentos que devem ser bem cimentados na opinião pública. Caso contrário, as reinvindicações do sector, por mais legítimas, continuarão a cair em saco roto. Enquanto para lá da Cultura, a Cultura for secundária, as suas dores juntar-se-ão acriticamente ao rol de carências que, num país tradicionalmente obrigado a racionar recursos, vão esgrimindo pelas migalhas que sobram. Enquanto para lá da Cultura, a Cultura for secundária, estará condenada a lutar, eternamente, pela meta do 1% do Orçamento do Estado, sem esperança de mais.

No mundo que a envolve, é inequívoca a certeza de que, mais do que um luxo despreocupado de alguns, a Cultura é um recurso universal para todos. Fora dele, essa certeza é uma luz ténue. É na desesperada necessidade de sintonizar a frágil imagem pública à sua realidade concreta que fazem falta, à Cultura, as exímias capacidades retóricas do marketing — o saber vender. Porque a Cultura sabe quem é. Temo que o público ainda não o tenha entendido bem.