O Governo anunciou recentemente que as Linhas ferroviárias de Alta Velocidade Lisboa-Porto-Vigo e Lisboa-Madrid serão construídas em bitola ibérica em vez da bitola europeia, que é a que existe em quase toda a União Europeia, mas não em Portugal. Esta política não permite que as nossas exportações e importações para países europeus para lá de Espanha se façam por ferrovia, comprometendo a sua competitividade. Em consequência compromete-se também a capacidade de atração e fixação de investimento industrial, e dessa forma, acentua-se a trajectória económica de Portugal para se tornar o país mais pobre da União Europeia, com os salários e pensões mais baixos, além de piores serviços públicos (saúde, educação, etc.).

Esta é uma política que os anteriores Governos justificavam com argumentos mal fundamentados por se basearem em análises superficiais e levianas. Os principais argumentos são:

  1. a Espanha não constrói linhas de bitola europeia para as nossas fronteiras.
  2. quando a Espanha fizer Linhas de bitola até às nossas fronteiras, depois disso mudaremos a bitola das nossas linhas rapidamente porque já estamos a deixar tudo preparado para isso
  3. existem soluções tecnológicas que dispensam a bitola europeia
  4. os inconvenientes da fase de transição da bitola, em que existirão bitolas diferentes em Portugal.

Analisem-se agora os 4 argumentos com mais detalhe.

1º argumento (a Espanha não constrói linhas de bitola europeia para as nossas fronteiras): este argumento serve apenas para culpabilizar a Espanha pelas consequências das políticas dos governos portugueses, ou seja, usar a Espanha como bode expiatório para o Governo português não assumir as suas responsabilidades políticas. É óbvio que, para que as Linhas internacionais se construam, ambos os países têm de ter garantias de continuidade do outro lado da fronteira, ou seja, tem de haver Acordos com esse objectivo. Como foi Portugal que decidiu unilateralmente não cumprir os Acordos que tornariam isso possível (Acordos da Figueira da Foz, 2013) é Portugal que tem de tomar a iniciativa de propor novos Acordos nesse sentido, com Espanha e com a União Europeia, revisitando os Acordos anteriores. Como os Governos portugueses nem tentam fazer isso, a responsabilidade por este impasse é só dos Governos portugueses.

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2º argumento (…mudaremos a bitola das nossas linhas rapidamente….) – é falso e os técnicos da IP sabem-no perfeitamente porque depois de começar a mudar os carris de uma bitola para a outra (nem que seja em apenas 1 metro de Linha) a circulação de comboios fica interrompida na linha toda até ao fim da totalidade das obras. Ou seja, os períodos de interrupção contínua da circulação são de meses ou até anos. Imagine-se uma Linha de grande tráfego como a Linha do Norte a funcionar em via única durante 1 ano ou 2 para mudar a bitola. A economia não aguentava, ou seja, na situação actual é completamente inviável fazer isso.

3º argumento (existem soluções tecnológicas que dispensam a bitola europeia) – presume-se que essas soluções tecnológicas sejam os eixos variáveis. No entanto são os próprios fabricantes destes eixos que afirmam publicamente que estes eixos se destinam a facilitar a transição da bitola em Espanha. Se estes eixos fossem a solução permanente para o problema da bitola, os espanhóis que os fabricam e usam há mais de 50 anos já teriam dado por isso. Por tudo isto, as afirmações do Governo anterior quando dizia que estes eixos evitavam a necessidade de fazer a migração da bitola, baseavam-se numa análise leviana e superficial da questão.

4º argumento (inconvenientes da fase de transição) – este tipo de argumentos foi claramente usado para justificar a construção da Linha de Alta Velocidade Lisboa-Porto em bitola ibérica, devido à maior capilaridade com a rede existente. Embora muitos dos defensores da exclusividade da bitola ibérica o façam com sinceridade, a sua perspectiva é parcial e limitada, podendo conduzir a conclusões erradas do ponto de vista do interesse público porque a sua análise não compara vantagens e desvantagens do ponto de vista global, ou seja, da economia como um todo.

Vejamos então com detalhe quais são então as desvantagens de manter a exclusividade da bitola ibérica na rede ferroviária portuguesa. Dados os constrangimentos ambientais e energéticos que a Humanidade enfrenta, o actual modelo do comércio entre Portugal e a Europa, baseado na rodovia irá perder competitividade, isolando a economia portuguesa dos mercados europeus.  Assim a maior parte das nossas importações e exportações para a Europa perderão competitividade, e a nossa capacidade de atração de investimento industrial será baixíssima, e as empresas industriais que existem em Portugal só poderão sobreviver com políticas de baixos salários, acentuando a tendência para Portugal se tornar o país mais pobre da União Europeia. Por isso invocar argumentos mal fundamentados para manter a exclusividade da bitola ibérica na nossa rede ferroviária é de uma completa superficialidade e leviandade, porque ignora as principais consequências para o país. É uma atitude que, para dirigentes políticos com a obrigação de ponderar o interesse do país como um todo, revela incompetência política e falta de sentido de Estado.

Outro aspecto relevante deste tipo de argumentos são as contradições entre eles: o 2 primeiros argumentos, têm implícito que um dia mudaremos a bitola. Mas os 2 últimos argumentos justificariam que nunca se mudasse a bitola. Ou seja, os argumentos do Governo anterior contra a mudança da bitola são incoerentes uns com os outros, indicando que foram invocados e usados ao sabor dos interesses do momento para fingir uma motivação de interesse público.

Como se isto não fosse suficiente, acresce que Portugal tem perdido milhares de milhões de euros em Fundos europeus destinados à ferrovia, porque a nossa política ferroviária colide frontalmente com as políticas de transportes da União Europeia. Isto enquanto a Espanha construiu a maior parte da sua rede de Alta Velocidade e bitola europeia com comparticipações em geral acima dos 70%.

Nas últimas eleições, a AD apresentou um Programa baseado num cenário macroeconómico associado a um crescimento do PIB de 3.5% ao ano. É um cenário ambicioso, difícil de alcançar, mas não impossível. Um factor que o tornaria impossível seria a actual política de isolamento ferroviário e económico e consequente desincentivo à atração e manutenção de investimento industrial, pelo que é indispensável alterar esta política e introduzir a bitola europeia na nossa rede ferroviária para tornar possível o objectivo do Governo. Assim pergunta-se ao Governo da AD: o Programa económico da AD é para tomar a sério? Se sim, demonstrem-no.

P.S. Fundamentação mais detalhada do que se apresenta neste artigo pode ser encontrada aqui.

Junho de 2024

Contacto: mariolopes@tecnico.ulisboa.pt, tel: 966485262