O Governo anunciou recentemente que as Linhas ferroviárias de Alta Velocidade Lisboa-Porto-Vigo e Lisboa-Madrid serão construídas em bitola ibérica em vez da bitola europeia, que é a que existe em quase toda a União Europeia, mas não em Portugal. Esta política não permite que as nossas exportações e importações para países europeus para lá de Espanha se façam por ferrovia, comprometendo a sua competitividade, pois a via marítima não é uma alternativa para muitos sectores de actividade (O Conceito de Reindustrialização, Indústria 4.0 e Política Industrial para o Século XXI, CIP, 2018, Anexo II). Em consequência compromete-se também a capacidade de atração e fixação de investimento industrial, e dessa forma, acentua-se a trajectória económica de Portugal para se tornar o país mais pobre da União Europeia, com os salários e pensões mais baixos, além de piores serviços públicos (saúde, educação, etc.).

Esta é uma política que os anteriores Governos justificavam com argumentos mal fundamentados por se basearem em análises superficiais e levianas. Os principais argumentos são:

1.    a Espanha não constrói linhas de bitola europeia para as nossas fronteiras.

2.    quando a Espanha fizer Linhas de bitola até às nossas fronteiras, depois disso mudaremos a bitola das nossas linhas rapidamente porque já estamos a deixar tudo preparado para isso

3.    existem soluções tecnológicas que dispensam a bitola europeia

4.    os inconvenientes da fase de transição da bitola, em que existirão bitolas diferentes em Portugal.

Analisem-se agora os 4 argumentos com mais detalhe, incluindo as contradições entre alguns deles.

1º argumento (a Espanha não constrói linhas de bitola europeia para as nossas fronteiras): é verdadeiro, mas omite a razão porque isso acontece. Em 2003 Portugal e Espanha assinaram os Acordos da Figueira da Foz que previam 4 ligações ferroviárias em bitola europeia entre ambos os países.  Em 2012 Portugal renegou estes Acordos sem razões válidas. Estávamos no auge da crise económica, com a Troika em Portugal, não havia hipótese de construir as linhas nessa altura, por isso um adiamento até superarmos aquela situação, por exemplo até 2017, era indispensável. Mas não foi isso que o Governo PSD/CDS fez, pois declarou unilateralmente que não cumpriria o Acordo, sem estabelecer qualquer limite temporal. Os Governos seguintes, do PS, mantiveram essa decisão. Acresce que todas esses Governos declararam claramente que só introduziriam a bitola europeia na rede ferroviária portuguesa depois da Espanha a colocar nas nossas fronteiras. Cita-se a este propósito o documento da IP “Interoperabilidade da Rede Ferroviária Nacional” (pág 3, parágrafo 2): “Com efeito, Portugal tornar-se-ia uma “ilha ferroviária” caso a introdução da bitola europeia em Portugal se realizasse antecipadamente à sua chegada à fronteira”. Garantiu-se assim, que linhas espanholas em bitola europeia, quando chegassem à fronteira portuguesa, não teriam continuidade em Portugal. É assim absolutamente normal que os espanhóis não construam linhas de bitola europeia para as fronteiras portuguesas. Este 1º argumento serve apenas para culpabilizar a Espanha pelas consequências das políticas dos governos portugueses, ou seja, usar a Espanha como bode expiatório para o Governo português não assumir as suas responsabilidades políticas. É óbvio que, para que as Linhas internacionais se construam, ambos os países têm de ter garantias de continuidade do outro lado da fronteira, ou seja, tem de haver Acordos com esse objectivo. Como foi Portugal que decidiu unilateralmente não cumprir os Acordos que tornariam isso possível (Figueira da Foz, 2013) é Portugal que tem de tomar a iniciativa de propor novos Acordos nesse sentido, com Espanha e com a União Europeia, revisitando os Acordos anteriores. Como os Governos portugueses nem tentam fazer isso, a responsabilidade por este impasse (em que Portugal não faz a sua parte das Linhas internacionais em bitola europeia porque a Espanha não faz a sua parte, e a Espanha não faz porque Portugal não faz), é só dos Governos portugueses.

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2º argumento (…mudaremos a bitola das nossas linhas rapidamente….) – é falso e os técnicos da IP sabem-no perfeitamente. O anterior Governo, dizia que mudar a bitola é só “desaparafusa daqui, aparafusa ali”, o que é esquecer a questão principal e induz em erro a opinião pública, como se explica de seguida. As obras correntes de manutenção ferroviária são feitas normalmente durante a noite apenas, não afectando a circulação dos comboios durante o dia, porque as interrupções contínuas de circulação de comboios duram apenas algumas horas. A preparação para a migração da bitola, de que se fala, consiste em colocar desde já nas linhas travessas polivalentes, que permitem colocar os carris tanto na posição da bitola ibérica como na da posição europeia, mas não em ambas simultaneamente (por falta de espaço entre carris). Assim, depois de começar a mudar os carris de uma bitola para a outra (nem que seja em apenas 1 metro de Linha), os carris das duas bitolas deixam de estar alinhados e a circulação de comboios fica interrompida (ver pag 36) na linha toda até ao fim da totalidade das obras. Ou seja, os períodos de interrupção contínua da circulação passam de horas, para meses ou até anos. Imagine-se uma Linha de grande tráfego como a Linha do Norte a funcionar em via única durante 1 ano ou 2 para mudar a bitola. A economia não aguentava, ou seja, na situação actual é completamente inviável. A construção em bitola europeia só não tem custos adicionais ou outros inconvenientes em Linhas novas, não em Linhas existentes como a actual Linha do Norte. Para fazer estas obras na Linha do Norte ou noutras Linhas de grande tráfego, seria necessário dispor de uma alternativa para a maioria dos tráfegos que a solicitam, para tornar esses custos aceitáveis.

3º argumento (existem soluções tecnológicas que dispensam a bitola europeia) – presume-se que essas soluções tecnológicas sejam os eixos variáveis, que permitem aos comboios circular em linhas de bitolas diferentes, passando a baixa velocidade num intercambiador, que aproxima ou afasta as rodas de cada eixo. Estes eixos existem há mais de 50 anos em Espanha, foram aplicados em comboios de passageiros que fazem percursos internacionais, em Espanha e França (cuja rede está em bitola europeia), mas só recentemente foram aperfeiçoados para aplicações em vagões de mercadorias. Relativamente a eixos fixos standard, os eixos variáveis, apresentam diversos inconvenientes, como maior custo, maior peso, e custos de manutenção e reparação superiores e que apenas podem ser feitos em Espanha, junto dos fabricantes. Os vagões de eixos fixos de bitola europeia, por serem material standard sem qualquer sofisticação tecnológica, podem ser reparados em qualquer ponto da Europa, pois quase todas redes ferroviárias estão em bitola europeia. Pelo contrário, os vagões de eixos variáveis que se avariassem por exemplo na Alemanha, Áustria, Suécia ou em quaisquer outros países da União Europeia, teriam de ser rebocados para Espanha para ser reparados ou o operador teria de ter instalações fixas em todas as zonas da Europa em que operasse para fazer essas reparações. Isto retiraria a competitividade a esses operadores, que nessas circunstâncias nunca poderiam oferecer serviços competitivos de transporte de mercadorias na Europa para lá dos Pirenéus. Por isso os próprios fabricantes destes eixos afirmam publicamente que estes eixos aplicados a vagões de mercadorias se destinam a facilitar a transição da bitola em Espanha (ver pág 2). Se estes eixos fossem a solução permanente para o problema da bitola, os espanhóis que os fabricam e usam há mais de 50 anos já teriam dado por isso. Por tudo isto, as afirmações do Governo anterior quando dizia que estes eixos evitavam a necessidade de fazer a migração da bitola, baseavam-se numa análise leviana e superficial da questão.

4º argumento (inconvenientes da fase de transição) – foi claramente usado para justificar a construção da Linha de Alta Velocidade Lisboa-Porto em bitola ibérica, para permitir 1- fasear a sua entrada em operação, assim que o troço Porto-Soure estivesse construído, pois assim os comboios poderiam fazer o percurso ao sul de Soure na actual linha do Norte em bitola ibérica, e 2 – permitir que os comboios que percorreriam a nova Linha fizessem serviços noutras Linhas, actualmente todas em bitola ibérica, chegando a diversas cidades não servidas pela nova Linha (por exemplo Braga, Faro, Guarda, Évora, etc.). Se a Linha for feita em bitola europeia, para fazer o mesmo teriam de ser usados comboios de eixos variáveis. Estes eixos, fabricados essencialmente pelos fabricantes espanhóis CAF e Talgo, representariam para Portugal uma dependência estratégica inaceitável se fosse permanente, mas não se apenas fossem comprados uma vez para servir na fase de transição.  Embora muitos dos defensores da exclusividade da bitola ibérica o façam com sinceridade, a sua perspectiva é parcial e limitada, podendo conduzir a conclusões erradas do ponto de vista do interesse público porque a sua análise não compara vantagens e desvantagens do ponto de vista global, ou seja, da economia como um todo.

Vejamos então com detalhe quais são então as desvantagens de manter a exclusividade da bitola ibérica na rede ferroviária portuguesa. A Espanha investe todos anos milhares de milhões de euros do Orçamento de Estado (fora os Fundos Europeus) na sua rede ferroviária de bitola europeia. A IP afirma “nós temos a bitola europeia a centenas de kilómetros da nossa fronteira” (instante 3:30:00 de um debate na Ordem dos Engenheiros em 14 de Setembro de 2023), para dizer que não teríamos onde ligar se fizéssemos linhas de bitola europeia para a fronteira. Isso é verdade agora, mas é irrelevante: o planeamento da nossa rede ferroviária não deve feito para a realidade actual, de 2024, mas para a do futuro, que obviamente se irá alterando à medida que a Espanha continua a investir na rede de bitola europeia.

Sabe-se que em Espanha os investimentos na rede de bitola europeia continuam, que esta em breve ligará aos portos e plataformas logísticas da sua costa mediterrânica, e que depois será estendida ao resto de Espanha (não ser iria contra um dos principais drivers da política espanhola, a coesão territorial, que tem sido aplicado de forma estável nos últimos 300 anos e nenhum partido nacional de Espanha se propõe abandonar). Aliás a IP sabe perfeitamente que depois das principais obras em curso em bitola europeia, no País Basco e na costa mediterrânica até Algeciras, “daí é que vai partir para o resto da península” (instante 3:35:00). Assim, dentro de cerca de 20 anos a Espanha terá uma rede ferroviária de bitola europeia de cobertura nacional, com linhas aptas para tráfego de passageiros e mercadorias, plenamente integrada nas redes europeias, e Portugal não, porque o Governo planeia tudo em função do presente e não do futuro (visão reiterada consecutivamente, não deixando dúvidas, durante o debate na Ordem dos Engenheiros, aos instantes 4:15:40, 4:29:15, 4:34:45 e 4:39:00).

Dados os constrangimentos ambientais e energéticos que a Humanidade enfrenta e o interesse da Europa em reduzir as dependências energéticas dos combustíveis fósseis e de mercados potencialmente hostis, a sustentabilidade do sistema de transportes na Europa, tal como definida pela União Europeia, assenta nas seguintes vertentes:

  1. desenvolvimento de veículos ambiental e energeticamente mais sustentáveis, e
  2. grandes transferências modais para os modos mais sustentáveis, o marítimo e o ferroviário, constituindo este último a espinha dorsal do sistema de transportes.

Assim, o actual modelo do comércio entre Portugal e a Europa, baseado na rodovia irá perder competitividade, isolando a economia portuguesa dos mercados europeus. Refira-se que 70% do comércio externo de Portugal é com a Europa, e 80% deste, em valor (refere-se o valor porque do ponto de vista da economia é mais relevante do que a tonelagem), é feito por via terrestre representando cerca de 104 mil milhões de euros em 2023. Os países além Pirenéus, com os quais a totalidade do comércio terrestre se faz por rodovia, representam a maioria (57% do valor). Ou seja, sem uma alternativa competitiva ao transporte de mercadorias por rodovia, a maior parte das nossas importações e exportações para a Europa perderão competitividade, e assim a nossa capacidade de atração de investimento industrial será baixíssima, e as empresas industriais que existem em Portugal só poderão sobreviver com políticas de baixos salários.

A economia portuguesa  não terá possibilidade de competir com a espanhola, os empregos bem pagos na indústria serão cada vez menos e Portugal continuará o caminho dos últimos anos em que temos estado a ser ultrapassados por países europeus anteriormente mais pobres do que nós, acentuando a tendência para Portugal se tornar o país mais pobre da União Europeia. Ou seja, as consequências da actual política ferroviária, vertidas no Plano Ferroviário Nacional, PFN, têm consequências gravíssimas para a economia. Na opinião do antigo Ministro da Indústria, Mira Amaral, expressa durante um debate sobre este tema na Ordem dos Engenheiros em 14 de Setembro de 2023, “este PFN não é um erro ferroviário, é antes um crasso erro económico, consubstanciado numa visão chocantemente doméstica da nossa economia esquecendo a necessidade duma logística eficiente que permita a um país fisicamente periférico em relação ao centro da Europa tornar competitivo o transporte de mercadorias para os mercados europeus” (ver pág 10).

Opiniões semelhantes sobre a necessidade de ligações directas e competitivas ao centro da Europa (ou seja, sem transbordos, para o que terão de ser em bitola europeia) foram também expressas em 2018 pelo Conselho da Indústria da CIP (ver Cap. VI) e em 2019 por algumas das principais Associações empresariais regionais (pag 28) e pelo Presidente da CIP (pag 26). Por isso invocar argumentos mal fundamentados para manter a exclusividade da bitola ibérica na nossa rede ferroviária é de uma completa superficialidade e leviandade, porque ignora as principais consequências para o país. É uma atitude que, para dirigentes políticos com a obrigação de ponderar o interesse do país como um todo, revela incompetência política e falta de sentido de Estado.

Outro aspecto relevante deste tipo de argumentos são as contradições entre eles: os dois primeiros argumentos, em que se culpabiliza a Espanha e se refere a facilidade e rapidez da mudança da bitola quando a política espanhola mudar, tem implícito que um dia mudaremos a bitola. Mas os dois últimos argumentos, a existência de soluções tecnológicas para o problema da bitola e o facto não se justificar a transição da bitola devido aos inconvenientes e custos da fase de transição, justificariam que nunca se mudasse a bitola. Ou seja, os argumentos contra a mudança da bitola, são incoerentes uns com os outros, indicando que foram invocados e usados ao sabor dos interesses do momento para fingir uma motivação de interesse público.

Acresce que estes argumentos foram apresentados publicamente no debate na Ordem dos Engenheiros em 14 de Setembro de 2023, em que participaram o Vice-Presidente da IP e o Secretário de Estado das Infraestruturas, que ouviram estes argumentos e apenas os ignoraram, nunca tendo contestado a sua fundamentação (ouvir o Vice-Presidente da IP a partir do instante 3:27:00 e o Secretário de Estado das Infraestruturas a partir do instante 4:05:30).

Existem outros argumentos contra a migração da bitola ibérica contra a bitola europeia, todos eles mal fundamentados (ex: 1 e 2)

Então quais são as motivações para esta política desastrosa de isolamento ferroviário e, em consequência, económico? A única razão, apresentada em 2018 e 2022 pelos anteriores ministros das Infraestruturas, Pedro Marques e Pedro Nuno Santos, foi usar a bitola ibérica para dificultar a concorrência na operação ferroviária e protegera CP. As empresas privadas do sector do transporte de mercadorias têm também apoiado esta política. Ou seja, sacrifica-se a competitividade da economia para proteger as empresas de operação ferroviária da concorrência, o que é absolutamente extraordinário num país da União Europeia, seria mais natural se estivéssemos na defunta União Soviética.

Como se isto não fosse suficiente, acresce que Portugal tem perdido milhares de milhões de euros em Fundos europeus destinados à ferrovia, porque a nossa política ferroviária colide frontalmente com as políticas de transportes da União Europeia, que quer promover redes ferroviárias interoperáveis em toda a União Europeia. Interoperáveis significa que não há restrições técnicas à circulação de comboios, o que implica, entre outros factores, que as Linhas têm de ser em bitola europeia. Como este é um dos principais factores de elegibilidade nas candidaturas a Fundos Europeus do Mecanismo Interligar a Europa (CEF – Connecting Europe Facility) (ver pag 28), no quadro comunitário 2014-2020 Portugal esperava obter do CEF–Geral, ou CEF-UE (parte dos fundos do CEF, obtidos não por nacionalidade mas por mérito dos projectos) 1250 mihões de euros (pag 50) e obteve cerca de 150 milhões (pag 49) de acordo com as “List of proposals selected for receiving EU financial assistance in the field of Connecting Europe Facility (CEF)-Transport sector following the call for proposals based on the Multi-annual Work Programme and on the Annual Work Programme”. No caso da nova Linha de Alta Velocidade Lisboa-Porto o Governo espera obter participações da UE de cerca de 20%, nem tentando obter Fundos do CE–Geral, que no quadro Comunitário 2014-2020 financiava estas obras a 40% e no actual a 30%. Isto enquanto a Espanha construiu a maior parte da sua rede de Alta Velocidade e bitola europeia com comparticipações em geral acima dos 70%. Isto também ilustra outra tendência, que é a redução das comparticipações da UE com o passar do tempo.

Ou seja, quanto mais tarde Portugal iniciar a introdução da bitola europeia, menos apoios da UE receberemos. No caso concreto da Linha Lisboa-Porto, a Comissão já informou que para Portugal receber financiamento europeu terá de estar em bitola europeia em 2030. Como a Linha só será completada depois de 2030, nem vale a pena fazer a 1ª fase em bitola ibérica, porque teria de se mudar antes de acabar a 2ª fase. A alternativa, para manter a bitola ibérica depois de 2030, é passar o financiamento europeu a zero. Ou seja, aumentar a dívida que os portugueses terão de pagar para que as empresas de operação ferroviária tenham menos concorrência.

Nas últimas eleições, a AD apresentou um Programa baseado num cenário macroeconómico associado a um crescimento do PIB de 3.5% ao ano. É um cenário ambicioso, difícil de alcançar, mas não impossível. Um factor que o tornaria impossível seria a actual política de isolamento ferroviário e económico e consequente desincentivo à atração e manutenção de investimento industrial, pelo que é indispensável alterar esta política e introduzir a bitola europeia na nossa rede ferroviária para tornar possível o objectivo do Governo. Assim pergunta-se ao Governo da AD: o Programa económico da AD é para tomar a sério? Se sim, demonstrem-no.

Junho de 2024

Contacto: mariolopes@tecnico.ulisboa.pt, tel: 966485262