Assistimos ao longo dos últimos meses a sucessivas greves na ferrovia, mas que não representam a totalidade dos desafios do setor. A gestão da Ferrovia em Portugal tem sido marcada por desinvestimentos, atrasos frequentes e planos que ficam no papel sem execução. A falta de uma visão clara e de futuro sobre o papel a desempenhar pela ferrovia e qual o seu eixo de ação representa a maior ameaça ao setor e, infelizmente, não apresenta sinais de verdadeira mudança com o novo Plano Ferroviário Nacional.

Apesar disso, considero que é da máxima importância nacional e europeia a existência de uma ferrovia atual, ampla e funcional. Assim sendo, venho trazer um panorama do setor e do que pode ser o seu futuro.

A história do desenvolvimento do caminho de férro português começou em 1853, com ligação entre Lisboa e Carregado, e sentiu o seu maior impulso na segunda metade do século XIX. Ao longo do período após o 25 de Abril sofreu recuos e, paradoxalmente, temos hoje menos quilómetros de ferrovia do que no passado. O grande responsável por esta redução foram as políticas nacionais que privilegiaram a rodovia e, mais recentemente, a autoestrada. Desde os anos 80 até 2011 o investimento na rodovia foi quatro vezes superior ao registado na ferrovia e, por isso, Portugal é dos poucos países europeus com mais quilómetros de autoestrada que de caminho de ferro. Desta forma, a ferrovia tornou-se uma memória distante e saudosa.

Atualmente, vivemos entre dois presentes: o europeu e o nacional, uma vez que, apesar de sermos membros do espaço económico europeu, não acompanhamos aquilo que é a aposta na modernização e expansão do setor e subsistimos a prazo sem soluções para os problemas sobejamente conhecidos.

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A ligação rápida entre França e Espanha, anunciada recentemente, é o último dos muitos passos dados no sentido de uma Europa que tem como objetivo duplicar o uso de comboios de alta velocidade até 2030 e triplicar até 2050. Desta forma, o objetivo definido a nível europeu é a criação de uma rede ferroviária conjunta que substitua as ligações aéreas de curto e médio curso. Na qual os países cooperam no estabelecimento de ligações transnacionais que permitem florescimento económico, redução do tempo de viagem e corte das emissões de CO2.

Esta visão conjunta esbarra na ilha ferroviária portuguesa, onde a atualidade é marcada por greves cada vez mais frequentes e promessas por cumprir. Ainda não existe em Portugal a valorização necessária da exploração da rede e dos serviços associados, o que leva ao clima de protesto e indignação que existe no setor. E o tão aguardado Plano Ferroviário Nacional, apesar de mais ambicioso do que o inicialmente esperado, não tem a calendarização fundamental para o seu cumprimento e deixa de fora aspetos cruciais, como a intermodalidade e as ligações internacionais. Por exemplo, a tão esperada ligação a Badajoz será inaugurada apenas em 2024!

A ligação a Badajoz é fundamental uma vez que vai permitir a ligação Lisboa-Madrid em menos de 3 horas, face às 9 horas atuais. Desta forma, a ligação ferroviária será tão ou mais rápida que um voo de curta distância e permitirá oferecer uma alternativa no transporte de passageiros com um enorme impacto económico e ambiental. Cada voo neste trajeto emite 109 kg de CO2. Por oposição, uma viagem de comboio emite apenas 23 kg de CO2. Assim sendo, é difícil de compreender a falta de uma maior ambição em projetos como este.

No âmbito do transporte de carga, apesar da relevância que a ferrovia tem no transporte de mercadorias a nível nacional e ibérico, em particular a CP Carga, os principais pólos portuários e industriais ainda não estão devidamente conectados, algo que é pedido publicamente por diversas empresas. Além disso, de forma a garantir a sustentabilidade e a estabilidade financeira a longo prazo é essencial um aumento da produtividade e uma redução dos custos logísticos através da otimização da rede.

A isto tudo juntam-se as assimetrias e desigualdades regionais, que colocam em causa o papel da ferrovia enquanto alavanca de coesão territorial e de criação de bem estar social. Não só pela ausência das ligações, mas também pela fraca manutenção de infraestruturas e coordenação de horários nas linhas já existentes.

Perante um futuro que será uma época de desafios, e tendo tamanhos problemas por resolver, na minha opinião, muitas das respostas encontram-se numa aposta séria e assertiva na ferrovia.

A ferrovia consome 7 vezes menos energia e 9 vezes menos emissões que o transporte rodoviário. Desta forma, pode ser um instrumento para o alcance das metas europeias e para a redução da importação de combustíveis fósseis até 2035. Além disso, a ferrovia permite não só reduzir os custos e emissões de transporte rodoviário, mas também eliminar por completo voos de curta distância, como os de Lisboa-Porto, e oferecer ligações diretas aos grandes centros urbanos internacionais, como Milão, Barcelona e Paris.

No que toca a passageiros, a ferrovia tem o potencial de promover o repovoamento regional e reduzir a saturação das zonas urbanas, em particular Lisboa. Neste aspecto a Alta Velocidade não é eficaz e o investimento terá de recair na ampliação do serviço intercidades, com horários de elevada regularidade nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos (Lisboa e Porto). Por isso mesmo, é com grande espanto que não encontro na lista de prioridades regiões como o Oeste, onde a consolidação de tais investimentos teria um impacto irrefutável.

No que toca ao transporte de mercadorias, tem de ser necessário almejar um aumento da eficiência das nossas ligações comerciais com o resto do continente europeu e, igualmente, expandir as conexões a pólos portuários e industriais para aumentar o investimento nos mesmos. Neste âmbito, existem dois eixos que se destacam: Sines-Leixões e Évora-Badajoz, fundamentais para uma estratégia mais ampla que assenta numa plataforma multimodal e que tem como objetivo a ligação entre os portos e o interior.

Além disso, de forma a garantir a sustentabilidade e estabilidade financeira a longo prazo é fundamental um aumento da produtividade e uma redução dos custos logísticos através da otimização da rede. As comunidades e as empresas exigem-no e é absolutamente necessário para o crescimento do PIB do país.

Em último lugar, mas não menos importante, será a agilização de processos e a aposta numa calendarização ambiciosa. Não nos podemos esquecer de que muitos destes projetos, se não avançarem até ao final deste ano, poderão ficar sem o acesso ao financiamento europeu até ao ano de 2030.

Em suma, a renovação e modernização da rede ferroviária têm o potencial de trazer desenvolvimento, repovoamento e promover o combate às alterações climáticas. Uma vez que a ferrovia é uma ferramenta fundamental na redução de emissões, custos e dependência económica. Como tal, defendo a existência do investimento e do planeamento necessários para o renascimento do Comboio Português.