As lacunas e fragilidades do Serviço Nacional de Saúde, SNS, ficaram visíveis com a pandemia de Covid 19 e nunca mais desapareceram. Hoje, assistimos à degradação da sua qualidade com o encerramento de serviços, como a ginecologia e obstetrícia em diversos pontos do país, caos nas urgências e ausência de médicos de família.

Esta situação resulta de anos de acumulação de necessidades de saúde não satisfeitas e não pode ser dissociada do excesso de mortalidade que ocorre em Portugal face a outros países europeus.

Assim sendo, é ainda possível acreditar num SNS gratuito, universal e de qualidade? Será o futuro da saúde portuguesa atendido no privado?

A procura de cuidados de saúde no setor privado, também designado de social, existiu desde sempre. A criação do SNS, revolucionou o ecossistema de saúde português e trouxe um elemento de exclusividade e de privilégio ao privado. O acesso facilitado a quartos privativos e uma relação de proximidade, por vezes, inclusive lealdade, com os médicos são alguns exemplos desta exclusividade.

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No entanto, esta divisória começou a esbater-se com um fluxo de utentes que migraram do SNS para o privado nos últimos anos, porquê? A pandemia e a sua gestão, apontadas por muitos como um fator decisivo, foram de facto determinantes para muitos, mas as raízes desta situação são mais profundas e complexas. As lacunas do SNS já referidas, assim como as dificuldades no acesso aos seus cuidados com a generalização de longas listas de espera são um fator decisivo e que se agravaram ao longo do tempo. Um dos exemplos mais óbvios é o número de utentes sem Médico de Família ter aumentado de 700 000 em 2015 para 1,7 milhões atualmente – número mais elevado nos últimos 8 anos. Logicamente, na ausência dos cuidados necessários, desde consultas a cirurgias, os utentes do SNS com capacidade financeira suficiente procuraram a solução no privado.

Outra das causas para a degradação do SNS é a sua incapacidade de captação e retenção de profissionais. Publicamente, a discussão deste tema tem-se muitas vezes resumido a uma dicotomia entre aqueles que consideram o privado culpado e aqueles que o vêem como uma tábua de salvação. Na minha opinião, o verdadeiro culpado deste êxodo é a falta de condições de trabalho. Basta observarmos que os médicos trabalharam 7.5 milhões de horas extras em 2021, remuneradas de forma insuficiente, ou no sistema de colocações de regras inconclusivas. Questões que, aproveito para realçar, não são resolvidas no novo Orçamento de Estado.

Além disso, hoje em dia, o mercado da saúde internacionalizou-se e a competição por recursos humanos é intensa, sendo este um dos principais desafios para ambos setores, público e privado portugueses que não se modernizaram na sua burocracia e gestão. Atualmente, em resultado disto e da oferta de melhores condições de trabalho, a migração de médicos e enfermeiros para o estrangeiro agudizou-se. Um exemplo ilustrativo é o seguinte, segundo os dados da OCDE, em 2020, existiam 6627 enfermeiros portugueses emigrados.

Assim, para este problema não existe uma varinha mágica, contrariamente ao que certas vozes apregoam com o regime de exclusividade – que traria ainda mais dificuldades à contratação e uma subida abrupta das remunerações. A solução passa sim pela criação de incentivos, reforço do financiamento e melhoria da eficiência com a modernização da gestão dos recursos humanos e financeiros. A solução passa também pela competitividade positiva e pela diversificação da nossa saúde. Por que não apostar em turismo de saúde? Por que não investir na indústria biomédica, que tem dado cartas com criação de patentes e tratamentos inovadores?

Esta visão pode parecer utópica tendo em conta a situação do país. A degradação do SNS é profunda e impede inclusive o funcionamento dos cuidados primários que começam a ser prestados no privado. No ano de 1999 as consultas nos hospitais privados representavam 15.6% do total e em 2019 representam já 37.3%. Se olharmos para os serviços de urgências, tendo por base o mesmo período temporal, verificamos que as urgências privadas subiram de 4.2% para 17.3% do total. Desta forma, parece-me inevitável, ideologias à parte, reconhecer a necessidade do privado e das parcerias público-privadas, PPP, no ecossistema de saúde português.

Tendo em conta a situação real a que todos assistimos e os dados estatísticos, se nada for feito, a tendência nacional é transparente: A redução da importância do Estado como prestador e o colapso do SNS. Por isso, é igualmente importante reconhecer a importância de um maior e mais eficiente investimento público no SNS para garantir a sua sobrevivência. E, não menos importante, para garantir que o SNS não se transforme num serviço destinado apenas aos portugueses que, por carência económica, são privados do direito de escolha.

Em suma, o diagnóstico à saúde portuguesa é dramático. A prioridade deveria ser a prestação dos cuidados de saúde necessários de forma atempada a todos os portugueses, salvaguardando as suas vidas e dignidade – por oposto a cegueiras ideológicas e conflitos internos. Como tal, eu considero fundamental para esse desígnio um Sistema Nacional de Saúde Gratuito e Universal de qualidade. Compreendo que, no entanto, as políticas governativas atuais não o asseguram e assistimos a discussão social de público versus privado. Desta forma, tendo em conta a realidade portuguesa, o futuro tem de ser o de reforma e inovação. Devemos apostar na complementaridade e encontrar o equilíbrio entre as necessidades e benefícios de ambos os setores.