«A França, a mais brilhante e perigosa das nações da Europa, é também a mais propensa a tornar-se, sucessivamente, objecto de admiração, de ódio, de comiseração, de terror, mas nunca de indiferença».
Alexis de Tocqueville
Escrevo acerca da minha perspectiva pessoal (e não especializada) da situação francesa da actualidade, a convite dos amigos da Oficina da Liberdade.
Em primeiro lugar, convém esclarecer desde logo e para simplificar que, em França, só existe representação partidária de um tipo de Filosofia política: o Estatismo. Ou seja, e na prática: Socialismo (colectivismo social, e talvez um pouco identitário). Isso era verdade há 120 anos quando Émile Faguet transcreveu em livro essas palavras do fabuloso Gustave le Bon, e continua a sê-lo hoje. O país que teve honras de francofonia de personalidades como Tocqueville, Bastiat ou Molinari, não tem efectivamente qualquer amostra significativa de partido que se assemelhe sequer timidamente às premissas de defesa de Liberdade (económica ou outra) no panorama político. Em suma, nada que me entusiasme desse ponto de vista.
Trata-se de um país que sobrevive com um orçamento público anual de 400.000 milhões de euros, cuja metade (200.000 milhões) é deficitária e depende de financiamento externo, engrossando uma dívida que já vai superior a 3.000 biliões (3.000.000 milhões) de euros em 2024 (110% do PIB). Trata-se de um país para o qual as agências de notação de risco de crédito (Standard & Poor’s, e amigas) baixaram a notação para um tão lisonjeiro quanto frágil «B» na última avaliação (este mês), a relembrarem-me gloriosos tempos recentes na Lusitânia. Trata-se de um país com uma Economia originalmente forte na produção de valor, prejudicada crescentemente com criação de entraves ao empreendedorismo e à acumulação de riqueza (o chamado «capitalismo de conivência» que se traduz, mais realisticamente, por se tratar de um socialismo qualquer, mas ao qual se convencionou universalmente chamar «ultra-liberalismo» para disfarçar). Com perturbação permanente do sistema de estabelecimento de preços. Com despesas sociais a granel (e entre as maiores do mundo). Com um PIB per capita com tendência para a estagnação (e ultrapassado por cada vez mais nações, distanciando-se do dos EUA). E que, por fim, se debate com um problema de baixa de natalidade, combinado com o de uma crescente imigração que se tem revelado culturalmente conflituosa, e está na origem de variados faits divers graves (para os que desvalorizam), ou factos de sociedade premonitórios (para aqueles que os valorizam).
Hoje
Isto com um governante-mor pro-europeísta que alguns têm o desplante de designar como sendo «liberal» (que, tal como o termo «fascista», hoje em dia serve para tudo e seu contrário…), responsável do Macronismo, no poder desde 2017, e actualmente a arrastar-se pelo seu segundo mandato (com termo previsto lá para 2027).
Desplante pelo facto de o défice e a dívida terem explodido nesse mandato («culpa da COVID, e da guerra», e do que calhar…). Pelo liberticídio se ter tornado norma (durante a COVID um pouco como pelo resto do mundo, através de episódios de censura de canais televisivos considerados demasiado «à direita», etc…). E pelo desprezo pelas propriedades pública (imigração, vandalismo) e privada (que poderia ser ilustrada com as tão famosas quanto inacreditáveis tropelias dos conhecidos «squatteurs/okupas», entre várias outras, a começar pelo significativo e sempre crescente roubo do rendimento de quem o cria, e/ou poupa, e/ou lega). Aumentou timidamente, e muito recentemente, a idade de reforma para 64 anos de idade, com a traumatizante memória dos gilets jaunes ainda bem viva.
Posiciona-se claramente a favor de uma «soberania europeia», dessa espécie de «nação europeia» que pelos vistos existe algures no seu imaginário, defraudando a (por sua vez bem real) nação gaulesa, pela qual foi eleito e que tem cada vez menos paciência para o aturar. Com esse posicionamento, condiciona a governação do país ao «governo dos juízes», quer os franceses, quer (sobretudo) os europeus, que escrevem as leis ao abrigo de tratados que os primeiros depois transcrevem e aplicam, inviabilizando propostas e iniciativas, independentemente de serem a vontade do povo manifestada em eleições ou por outras vias. E deixando caminho aberto ao populismo soberanista e a um saudoso apelo chauvinista pela identidade que é a deles.
Teve maioria parlamentar do seu partido até 2022, e a partir daí maioria relativa, o que obrigou, no regime presidencialista em causa, a acordos do seu governo com a oposição, e quando esses não eram possíveis à aplicação de um tal «artigo 49-3», uma idiossincrasia autóctone que permite a aprovação de diplomas sem votação parlamentar (ou seja: ignorando na prática a existência dessa instituição).
A essa esquerda (ou Socialismo) de Macron que vos acabo de descrever, eles chamam «o centro».
Mas como se chegou a esse centrão francês, fenómeno recente naquelas bandas?
O Status Quo
É preciso compreender que, desde a instauração da 5.ª república por De Gaulle em 1958, em reacção ao chinfrim reinante na 4.ª de um sistema, afinal, aparentado ao nosso (eleição proporcional), o panorama foi tradicionalmente bem diferente. Essa reforma decidiu essencialmente que as eleições se passavam a fazer em duas voltas: uma primeira da qual emergiam dois candidatos/partidos «mais votados», e a decisão em segunda volta por qual dos dois se optava definitivamente (com «50% mais uns votos). Isso é válido em eleições presidenciais e em eleições parlamentares/legislativas (entre candidatos às várias circunscrições eleitorais, que são 577 e elegem um deputado parlamentar cada), e tem a «vantagem» de eliminar partidos menores da equação e que caso contrário poderiam, aqui e ali, fazer escusado ruído, obrigando então o povo a optar por um dos dois mais favorecidos do momento, tornando desse modo o país supostamente mais governável pelo vencedor da contenda. Ou seja, foi uma reforma em prol da «governabilidade».
A coisa disputou-se, até Macron, entre aquilo a que na Gália chamam «esquerda», o que incluía o PS «tradicional» e aparentados, Socialismo clássico centrado no trabalho, na igualdade entre classes e no laicismo de Estado, e cujo último período glorioso foi o dos dois heptenatos de Mitterrand nos idos anos 80-90, com um estertor final com o motoqueiro Hollande (e já em fórmula quinquenato), algures entre as presidências de Sarkosy e Macron.
E claro, aquilo a que por lá chamam de «direita», encarnada no agora vestigial Les Républicains (LR), outrora com outras siglas, e que teve em Sarkosy o seu último representante.
Durante muito tempo, o poder oscilou entre essas duas «torres gémeas», como alguns lhe chamavam. E já há muitas eleições que elas representam menos de 10% do eleitorado, e as «torres» afastaram-se para os extremos, mas já lá vamos.
O bater de asas da borboleta
Nos idos anos 80, e para evitar desagradáveis coabitações com governos/parlamentos opositores, como aquela que teve que aturar com Chirac entre 1986 e 1988, Mitterrand teve uma ideia e inventou o conceito de «linhas vermelhas» (ou «cordão sanitário», ou cercle de la raison), recentemente adoptado por Portugal (que está visto não aprende mesmo nada com os outros) e com o mesmo objectivo: o de fracturar a direita, precavendo que, em eleições parlamentares, aquela voltasse a ganhar incomodativo protagonismo contraditório para a presidência. Funcionou.
Mas aí está, a esquerda não se costuma dar bem com noções de «prazo» e de preferência temporal em geral, e essa medida em particular envelheceu muito mal.
Ao mesmo tempo que o monstro contido pela linha vermelha (o Front National, do zarolho Jean-Marie Le Pen, a designada «extrema direita») foi crescendo, e passou a ser frequentemente o segundo partido mais votado no país, a estratégia continuou ainda assim a funcionar, já que agregava o «resto do mundo» votante na candidatura alternativa aquando da 2.ª volta.
Ou seja, passou a haver uma regra (desde 2002, com Chirac): o candidato que passasse à segunda volta das presidenciais (contra Le Pen) ganhava.
Claro que isso foi implicando pôr a esquerda a votar Chirac e Sarkosy, ou a direita a votar Hollande, ou ambas a votar Macron, o que resultou em mais que meros problemas gástricos temporários. Isto é, a prazo, foram-se diluindo na sociedade as noções de esquerda/direita tradicionais, e aprisionou-se a coisa política meramente ao campo «anti-Le Pen», com a percepção que, no final (aquando da 2ª volta), não restava alternativa de voto satisfatória para os eleitores que não se reviam no candidato desse campo (apenas revendo-se ainda menos na alternativa). Noção que o referendo de 2005 sobre a Europa apenas serviu para reforçar, depois do povo francês ter voltado «contra», só para depois os partidos do poder aprovarem o Tratado de Lisboa em 2008 (e, higienicamente, desta feita sem consulta popular). Para muitos, a consumação do divórcio entre a representação política e a vontade do povo, mesmo referendada.
Encalhado nessa realidade, a herdeira do FN, agora rebaptizado Rassemblement National (RN), decidiu enveredar por uma transformação para tornar o partido mais transversalmente digesto (pelo menos, para a restante direita), com uma liderança (de atribulada atribuição) encabeçada pela filha Marine (do zarolho fundador), e que bem recentemente encontrou um jovem porta-estandarte de indiscutível sucesso eleitoral, de seu nome Jordan Bardella. Esse partido, preconceitos à parte, caracteriza-se por ser, além de socialista como os outros (em termos de centralismo estadista e da filosofia de Economia social redistributiva), mais soberanista, e logo menos pró-europeísta (depois de ter sido anti-europeísta com Le Pen-pai), mais isolacionista (posicionando-se contra uma eventual intervenção na Ucrânia), e, obviamente, convictamente anti-imigracionista e pró-restituição de fronteiras.
Como epifenómeno curioso, poderia ainda assinalar a emergência recente (em 2022) de Reconquête! («reconquista!»), liderada por um «fazedor de opinião» mediático e escritor localmente famoso chamado Éric Zemmour, que tem a peculiaridade de ser, vá lá, menos socialista que os outros todos, sobretudo em termos económicos, além de assumidamente anti-wokista (mas tão ou mais soberanista e anti-imigracionista que o RN). Foi a sensação da campanha das presidenciais em 2022, onde acabou por atingir 7% dos votos, com os seus slogans non au grand remplacement (substituição demográfica de franceses por imigrantes extra-europeus), non au grand déclassement (perda de poder económico em geral) e non au grand endoctrinement (relativamente aos costumes do país em detrimento da cultura woke). Conseguiu agora eleger 5 eurodeputados numa lista encabeçada pela Marion Maréchal… Le Pen (sim: neta do zarolho, e sobrinha da Marine). A ideia desse partido, defendida pelo seu promotor, é ser uma alternativa de direita viável ao eternamente refém das linhas vermelhas RN. E resultou, entre outras coisas, num ódio profundo por parte da tia da sua cabeça de lista às europeias.
O terramoto
Ora, a actualidade parece ensinar-nos que o bater de asas de borboleta de há 40 anos se pode afinal traduzir numa bem real catástrofe de proporções épicas nos dias de hoje.
O modelo de um confronto morno entre «direita» e «esquerda» tradicionais em alegres primeiras voltas, com eleição sistemática do vencedor daquele na segunda volta face ao figurante FN/RN, parece estar a chegar ao seu fim, após a mera acalmia da emergência desse centrão unificador macronista (que reune militantes domesticados de ambos os espectros).
E é capaz de ter levado à emergência de um segundo «monstro», já que o povo, farto de ser servido com a alternativa entre «os do costume» (e que não se parecem com alternativa nenhuma) e o «infrequentável», acabou por, além de engrossar cada vez mais as fileiras do infrequentável (onde os mais impacientes de direita puderam ir sublimando as suas frustrações crescentes…), refugiar-se ainda na emergência de uma espécie de bloco de esquerda hiper-agregador lá do sítio (La France Insoumise a solo, NUPES em banda), liderado pela pessoa do Jean-Luc Mélenchon, personagem trotskista sinistro que combina (e admira) as personalidades de Robespierre e de Foucault numa mistela explosiva de defesa do universalismo imigracionista (o famoso vivre ensemble) e do anti-colonialismo, de comunitarismos variados que lhe garantem, pela mera evolução demográfica, percentagens crescentes de votantes nas banlieues («subúrbios» das grandes vilas onde predominam imigrantes), e naturalmente de todas as nuances de wokismo (porque sim, apesar da paradoxal conciliação com as populações referidas supra). E fá-lo, mesmo que isso represente um resvalar para o lado de companhias bem próximas do islamismo, que relembro que nesse país mata, literalmente, pessoas em concertos, em festivais de rua esmagados por camiões, por beberem álcool durante o ramadão no espaço público, por não usarem véu nas escolas, padres católicos, judeus, professores que não respeitam certas «escrituras» e costumes, ou jornalistas que decidem caricaturar ofensivamente beduínos do século VII, entre muitos outros exemplos que seria possível dar aqui (já que a lista é enorme) de idiossincrasias próprias de ritos que estavam tradicionalmente reservados a outra latitudes bem distantes.
Esse novo monstro, refúgio da população de tendência «mais à esquerda» adepta de algum destes temas, já disputou o segundo lugar das preferências nas presidenciais em 2022, e foi a segunda formação mais representada nas legislativas que se seguiram no mesmo ano!
Pragmaticamente, com a desacreditação resultante da evolução no tempo das «cercas», parece não restar alternativa a prazo aos franceses senão a de optar, por entre os que se situam «mais à direita», pelo RN, e os «mais à esquerda» por essa coligação de esquerdas (NUPES), claramente dominada pelos melenchonistas.
E sem regras sanitárias ou linhas que lhes valham!
Epílogo
Estamos nele.
As recentes europeias (que em França têm a originalidade de serem proporcionais) deram 31,4% e 30 lugares ao RN liderado por Bardella (o tal menino-prodígio da Marine), mais do dobro que os míseros 14,6% da lista macronista (com 13 lugares), praticamente empatada com a lista socialista (epifenómeno desta eleição, graças à personalidade do candidato Glucksmann), além de mais umas poucas formações que se colocaram entre os 5% (limiar para eleger deputados) e os 10% (melanchonistas com 9,9%, LR com 7,2%, ecologistas e Marion Maréchal com 5,5%). Isto apesar do partido presidencialista ter decidido (de uma forma que alguns poderiam classificar como «pouco democrática»), já no final da campanha, bipartidarizar essas eleições europeias com o RN, organizando num canal de televisão público um longo e explosivo debate entre Bardella e o actual primeiro ministro, por sua vez um jovem e talentoso político no qual certos macronistas depositam grandes esperanças para o futuro: Gabriel Attal (que nem era sequer candidato a essas eleições).
Na sequência desses resultados desastrosos, o bom do Emmanuel fez uma birra (ou uma improvável jogada de génio, como poderão insinuar eventuais fãs…), e dissolveu o parlamento nacional (onde tinha maioria relativa), convocando eleições parlamentares relâmpago (a 30 de Junho -1ª volta- e 7 de Julho -2ª volta-) para eleger um novo governo, tudo neste ambiente explosivo de clivagem direita-esquerda com manifestações violentas quase diárias, alimentadas há uns meses pelos agricultores, depois (e ainda) pela situação em Gaza, e finalmente com a própria situação política (anti-fascistas, anti-semitismo, anti-o-que-se-quiser…), resultando numa «rua» a ferro e fogo às portas da organização do jogos olímpicos em Paris, previstos para finais de Julho. E, para apimentar, quando existe um complicado conflito num território francês ultramarino (a Nova-Caledónia, mas não me vou esticar que a prosa já vai longa…), e na situação económica brevemente descrita supra.
«Aux Armes, Citoyens
Formez, vos bataillons»
Em consequência dessa decisão, poucos dias após a noite de eleições (e de dissolução), a esquerda, que não recebe lições de sobrevivência ou de capacidade de assalto ao poder (a qualquer preço) de ninguém, agregou-se tão rapidamente quanto supreendentemente num Front Populaire (frente popular), e que inclui toda a maralha do costume: PS francês, melanchonistas, comunistas, ecologistas e grupúsculos anticapitalistas diversos, daqueles que discordam que o Hamas seja uma organização terrorista, que acham que o 7/Outubro não passou de um legítimo acto de resistência e que não se preocupam em arriscar a contemplação futura das suas filhas e netas a viverem sob um regime de «sharia islâmica», única forma de organização política e social que qualquer bom muçulmano almeja.
E isso, mesmo quando é sabido e reconhecido que os respectivos líderes não se suportam nem pintados. A título de exemplo, Glucksmann, do PS e obreiro do tal excelente resultado nas europeias, que calha ser também judeu, foi vilipendiado, cuspido e agredido bem recentemente numa manifestação do 1º de Maio por parte de simpatizantes do espectro político que se posiciona ainda mais à sua esquerda, e isso pelas suas posições mais «tímidas» relativamente ao conflito do Médio Oriente durante as suas intervenções de campanha (admitindo caridosamente que as suas preferências religiosas não tiveram influência). Muitos reconhecerão aqui a concretização de um dos românticos aforismos de De Gaulle, que rezava dividirem-se os políticos em politiciens («políticos»: à escuta do povo, e para servir o povo) e politichiens (bom, julgo que até os menos francófonos reconhecerão o animal, e o reportar da questão à respectiva gamela…), ou dito de outra maneira, uma pouca virtuosa forma de estar na política pelo mero exercício interesseiro do poder. Outros refugiar-se-ão num pragmatismo adequado às regras de um sistema democrático. Certinho é que nenhum dos envolvidos dá qualquer relevância ao premonitório Houellebecq no seu «Soumission», escrito em 2015 e onde fala de uma futura França cada vez menos imaginária, numa altura em que as actuais minorias islâmicas deixarem de ser minoritárias.
Já está prometido o regresso da reforma aos 60 anos, a semana de 4 dias (no máximo), o aumento de salários e subsídios variados (menos os dos «ricos», ou à custa deles), tudo à pala daquela fortuna que o tio Patinhas guarda num cofre gigante e não quer partilhar com ninguém, como qualquer fã do jornal do Mickey saberá. Enfim, todo o analfabetismo económico da seita que estamos carecas de reconhecer, e que atirariam o país para a mais absoluta e imediata bancarrota, antes mesmo que Mélenchon conseguisse, na noite da segunda volta, subir à tribuna para clamar vitória ou reconhecer o Estado da Palestina.
Por outro lado, aquela que alguns consideram localmente ser a direita mais estúpida do mundo (la droite la plus bête du monde), com certeza por manifesto desconhecimento de direitas de outras bandas, está a revelar-se muito mais trapalhona na identificação do tal objectivo que a(s) esquerda(s) conhece(m) de cor.
O Presidente do LR, Éric Ciotti, decidiu unir o seu partido de direita dita moderada com o RN (e fazer frente comum ao tal Front Populaire), sendo imediatamente torpedeado por vários históricos do partido que se reuniram para o demitir de funções (com cenas a relembrar golpes palacianos de outrora), numa decisão que, para já, foi anulada em tribunal. O que não invalida que várias figuras desse partido, zelosos do poder expiatório da afirmação de suposta virtude, tenham vindo já jurar em público preferir votar pelos defensores do bem real fascismo islâmico da actualidade, bem autoritário, bem misógino, bem anti-semita, bem racista, e bem homofóbico (e certamente fóbico do restante alfabeto da coisa), ao invés de naqueles que eles consideram ser os herdeiros do velho fascismo/nazismo da 2ª guerra. O que faz que, dos 577 lugares parlamentares, não é certo que os 60 e tal do LR nas últimas legislativas se destinem à tal «frente de direita».
O outro muito mediático e militante grupo de direita (Reconquête!) foi ainda mais original e decidiu, simplesmente, implodir. Perante a recusa do RN em partilhar palco com esse partido, por manifesta irreconciliabilidade entre as duas principais figuras dos mesmos (Marine e Zemmour, mesmo depois deste ter prometido publicamente «apagar-se» em prol da união), a coisa resolveu-se com a sobrinha (Marion Maréchal), recém-eleita nas europeias, e vários deputados solidários, a serem expulsos, por entenderem que, mesmo a troco de nada, deveriam fazer frente comum com o RN (e em detrimento do seu próprio partido, e do seu próprio líder). Ou seja: não se sabe o que sobra disto tudo, mas atrever-me-ia a pensar que nem potenciação de votos, nem sequer progressão aritmética (relativamente ao suposto valor das direitas confundidas).
Quanto às consequências do analfabetismo económico desta outra forma de socialismo, as apostas parecem apontar para que a bancarrota talvez esperasse pelos primeiros passos do Bardella em Matignon (residência oficial do PM em França), por via de um golpe obrigacionista aproveitando o gigantesco défice público da actualidade (as teorias mais conspiracionistas, a reboque das ligações de Macron à comunidade de Davos, especulam uma espécie de patifaria como a que terá levado recentemente à demissão-relâmpago de Liz Truss, no Reino Unido). Adivinha-se nesse cenário um assalto às avultadas poupanças dos franceses, à imagem do que aconteceu com Raymond Barre, ministro da Economia no final da década de 70.
Para já, numa altura em que não se conhecem a maioria dos cabeças de lista às diversas circunscrições (o que tem bastante importância em eleições desta natureza), as intenções de voto parecem definir 3 blocos nas sondagens mais precoces, cada qual com cerca de 1/3 das intenções de voto na 1ª volta: o RN/Frente de direita, o Frente Popular, e os «restantes» (incluindo macronistas). Ou seja, com a maioria a ser disputada entre «extrema-direita» e «extrema esquerda», as novas «torres gémeas» do panorama eleitoral francês.
Em suma, a perda da maioria presidencial no parlamento parece provável, com necessidade de coabitação entre Macron e um governo alheio, com um primeiro-ministro concorrente. Nessa circunstância, irá ele encadear birras com uma demissão e convocação de presidenciais? Irá optar por um remake dos anos 86-88, com Mitterrand (presidente) e Chirac (PM), em que o primeiro passou o tempo a vetar tudo o que lhe era proposto pelo segundo, e em 2027 que seja «o que Deus quiser»? Ou isto é tudo uma «jogada», como alguns sugerem, já a antecipar um eventual voto de censura que teria lugar de qualquer forma mais lá para o final do ano, e com o mesmo resultado (eleições antecipadas), com a vantagem de poder em antecipação jogar a cartada da vitimização, ao mesmo tempo que conta com uma eventual ingovernabilidade que será assacada ao concorrente vitorioso?
«Marchons, marchons…»
Assim chegamos ao paradigma de uma França prisioneira entre duas soluções socialistas, ainda piores que as do costume. Ora o RN e o medo do renascimento de totalitarismos passados. Ora a Frente Popular e a ameaça de totalitarismos futuros (e presentes). Com promessa de farta despesa, e garantia de mais pobreza. E tudo num clima de pré-guerra civil nas ruas, como música de fundo.
Pode, pois, ser o preço a pagar-se pelo final da mentira socialista que contamina essa hiper-endoutrinada nação (um pouco à imagem da maioria das nações europeias).
Existem obviamente paragens mais auspiciosas em que pensar hoje em dia, e sobre as quais escrever artigos de opinião mais alegres e optimistas, como lá pelos lados da Patagónia onde Magalhães se perdeu e ganhou glória eterna, e que mostram que esse caminho de perdição pode acabar por redundar na iluminação final, mesmo depois de chegados à escuridão extrema do fundo do poço de pobreza e servidão.
Mas convinha relembrar que, para isso acontecer, é condição necessária que ainda exista uma «nação» nessa altura. Enfin, venham os franceses e escolham, e esperemos que, no final, lhes caia misericordiosamente uma porção relativamente clemente de céu em cima das cabeças…
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.