Vasco da Gama faleceu em Cochim, a 24 de Dezembro de 1524, e ficou sepultado no convento de Santo António. Cumpria a sua terceira missão em território hindustânico, agora na qualidade de governador e vice-rei, tendo como objectivo reestruturar a presença de Portugal no Oriente, para o que dispunha de amplos poderes jurisdicionais e não menos importantes recursos militares.
Nos já distantes anos de 1497-1498, aquando da primeira viagem marítima à Índia, era o jovem capitão-mor de uma pequena armada votada ao descobrimento; em 1502, aí regressou, à cabeça de uma frota com 20 navios, incumbido de assegurar o domínio português do Oceano Índico.
Todavia, mais de vinte anos decorridos sobre esta data, o quadro mostrava-se bastante distinto e pairavam ameaças sobre os interesses lusos na região. Gama agiu com a firmeza que se lhe conhecia, mas acabou por sucumbir a uma doença pertinaz, agravada logo após o desembarque em Goa. Apesar de muito curto – chegara no mês de Setembro –, o período durante o qual exerceu o governo deixou marcas.
Vasco da Gama, partindo de Lisboa (pintura de Alfredo Roque Gameiro, 1900)
O Centenário engasgado
Em 1924, numa altura em que a I República (à semelhança do que acontecera no estertor da Monarquia) não descurava a relevância da figura de Gama para a identidade nacional, assinalou-se com entusiasmo o quarto centenário da sua morte.
Em 2024, o quinto centenário esteve a ponto de passar despercebido e só foi salvo, in extremis, nos últimos meses. Alguns próceres da III República, exímios na estratégia de «cancelamento» da memória colectiva, quase iam conseguindo impor o passo seguinte de um funesto guião, outrossim bem maquinado, para o triunfo da amnésia. Fizeram-no em nome de uma «sopa de letras» que misturava a suposta defesa da primazia de valores globais com o esconjuro dos últimos demónios da descolonização e a necessidade de evitar susceptibilidades face aos novos residentes entre nós – e aos seus países de origem. Só não imperou o silêncio porque um ou outro porta-voz de comunidades locais bradaram alto; e o vento, entretanto, mudou de feição.
Lembremos dois casos paradigmáticos, ambos ocorridos, este ano, no Alentejo.
Em Sines, alguns marítimos procuraram um investigador da região, trazendo o recorte de um jornal de 1924 com a fotografia de um cortejo cívico, a sair da igreja de Nossa Senhora das Salas, em que o retrato de Vasco da Gama era levado, à unha, por façanhudos marinheiros; vinham pedir ajuda para que a efeméride dos cinco séculos da morte do almirante, pelo menos na terra onde ele nascera, não passasse em branco; um deles era neto de um dos militares que aparecem naquela velha imagem.
Mais adentro, na Vidigueira, foi uma associação regional a tomar a iniciativa, com o município, de fomentar, por ocasião de um festival de música, património e biodiversidade, a visita colectiva aos sítios, monumentos e obras de arte alusivos ao navegador. Dir-se-ia que a mobilização popular se substituiu, nestas e noutras ocasiões, às instâncias do Estado.
Vasco da Gama, retrato como Vice-Rei da Índia
Gama e Camões
Cinco séculos após o seu trespasse, Vasco da Gama continua a interpelar fortemente a sociedade portuguesa, ao ponto de alguns sectores (os mesmos que quiseram reduzir ao mínimo a evocação do quinto centenário do nascimento de Luís de Camões) procurarem obliterá-lo.
O tumultuoso almirante dos mares das Índias, desaparecido no mesmo ano em que o autor d’Os Lusíadas terá nascido, constitui um símbolo nacional que calou fundo na alma colectiva, digamo-lo sem titubeios.
Gama e Camões representam, aliás, duas faces da mesma moeda. Sendo assaz conhecidos os fundamentos, brilhantemente explanados por Thomas Carlyle, em On Heroes, Hero-Worship, and The Heroic in History (1841), do culto dos grandes homens, o caso de Vasco da Gama parece ultrapassar, em certa medida, a moldura romântica, traduzindo uma adesão colectiva que escapa a esse cânone e é consagrada pela própria tradição oral.
A vara floriu
Arnaldo Soledade, historiador de Sines, inventariou uma lenda representativa do que assinalamos. Segundo tal narrativa, ainda hoje muito lembrada, Vasco da Gama passeava, certo fim de tarde, pelas eiras de Monte Chãos, nos arredores da antiga vila, onde era costume debulhar-se o trigo das suas e de outras herdades, quando os trabalhadores regressavam do campo, conversando animadamente. Um jovem algo estouvado dirigiu-se então ao fidalgo e perguntou-lhe, à queima-roupa, se era verdade que ia partir à busca da Índia. Sentindo dúvida nas palavras do camponês, o futuro almirante, irritado, pegou numa vara e proclamou: «É tão certo eu descobrir a Índia como esta aguilhada florir!» O pau, mesmo com o ferro na ponta, destinado a picar os bois, floriu e manifestou, à vista de todos, o que viria a seguir.
Esta narrativa junta a evocação de um Gama rural, entregue à supervisão dos trabalhos agrícolas, como qualquer lavrador digno deste nome, a um episódio dos Evangelhos Canónicos, o da vara de Aarão, que floresceu pela vontade de Deus, relatado no Livro dos Números (17,16-25); e a um outro, extraído dos Apócrifos, o da vara de São José, da qual brotou uma pomba mais branca do que a neve, que consta do Evangelho do Pseudo-Mateus (8,1-4) e do Livro sobre a Natividade de Maria (7,2-4; 8,1).
O imaginário do povo, sem esquecer velhos símbolos, alcandorou o navegante ao estatuto de pater familias e taumaturgo. Conhecem-se mais relatos lendários a ele vinculados, não só em Sines e na Vidigueira – terras onde se respira de perto a sua memória –, mas também em Nisa, Évora, Lisboa, Olivença e Santiago do Cacém, para citarmos alguns casos merecedores de especial atenção.
Túmulo de Vasco da Gama, no Mosteiro dos Jerónimos
Celebrar os 500 anos da morte de Vasco da Gama: rede, rota e memória
Um paradoxo típico de uma época, como a nossa, caracterizada pela cultura da superficialidade, leva a que o intuito de obliterar Vasco da Gama, no contexto dos 500 anos da sua morte, tenha surgido em nome de princípios associados à defesa do mundo globalizado. Ora, não há dúvida de que ele foi, mercê principalmente da viagem de 1497-1499, um dos grandes fautores da globalização, enquanto fenómeno de intercâmbio cultural, social e político entre diferentes povos e comunidades, decorrente do estabelecimento de uma economia à escala planetária.
Contribuíram para isso dois pilares fundamentais que a expedição portuguesa tornou perfeitamente explícitos: mobilidade e trocas. Tão significativo se revelou o papel desempenhado por Gama (e pelos que o acompanharam) neste processo que a historiografia indiana sói valer-se, amiúde, da noção de «Era Gâmica» para caracterizar o impacto resultante da arribação dos navios capitaneados pelo sineense às praias de Querala.
Finalmente confirmado, após refregas, não apenas académicas, o afã oficial de comemorar a efeméride de 2024, continuando pelo ano de 2025 adentro, cremos que o melhor serviço que se poderá prestar à anamnese de Vasco da Gama é mostrá-lo tal qual ele foi, com as suas luzes e as suas sombras, no quadro do tempo em que viveu, tendo o particular cuidado de evitar anacronismos e lugares-comuns. De facto, só uma leitura de contexto dessa época poderá devolver um sentido integral à complexa personalidade daquele que alguns autores já consideraram – algo exageradamente, decerto – como «o último homem da Idade Média e o primeiro homem do Renascimento».
Se há espaço para uma renovação dos trabalhos científicos acerca do navegador, cumpre não esquecer o imperativo de tornar mais acessíveis a um público generalizado conteúdos de carácter geral, veiculados através de meios que democratizem o conhecimento da vida e da obra de uma figura que continua a despertar enorme interesse. Não podem ser igualmente escamoteados notáveis contributos do pensamento, da literatura e das artes para esse magno desiderato.
Faz deveras sentido, nas presentes circunstâncias, que a celebração do passado seja também a construção do futuro. O surgimento de uma rede internacional de instituições (academias, cátedras, centros de estudos, sociedades) ligadas à investigação de Vasco da Gama representará um notável avanço neste âmbito, tal como a criação de uma rota cultural que una as principais localidades, em Portugal, em África e na Índia, onde mais se fez sentir a presença do navegador. Ou seja, partir do local para nos aproximarmos do universal.
E, já agora, num país onde os museus e os centros interpretativos nascem como cogumelos, não seria oportuno lançar, em 2025, os fundamentos de um museu ou de um centro interpretativo – ou, quem sabe, de ambos – consagrado àquele que é, a par de Camões, o mais universal de todos os portugueses? Os cantos d’Os Lusíadas que apresentam o Gama como narrador ou lhe evocam os feitos bem poderiam servir de inspiração para tal, com a vantagem de que o seu conteúdo se tornaria bastante mais claro antes os olhos dos estudantes (e não só).
Subtítulos da responsabilidade do Editor
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]