As medidas podem ser muitas mas o problema dos melões é que nunca sabemos se são maduros ou verdes antes de os abrir, no caso deste melão temo que o abrimos e continuemos sem saber nada sobre o seu sabor.
Há já muitos anos que começo as minhas aulas sobre relação entre usos do solo e transportes com a seguinte boa ou má notícia, dependendo da perspetiva: os problemas das cidades nunca estão resolvidos. Essa é uma boa notícia para quem está a estudar o tema e pretende fazer disso a sua profissão, mas é uma má notícia para quem procura soluções rápidas e definitivas para os desafios que as cidades enfrentam ao longo dos anos.
Passaram já várias décadas desde que os problemas de planeamento foram identificados como sendo wicked (cruéis ou malvados). A definição de um problema dito “malvado” é a seguinte: “um problema social ou cultural que é difícil ou impossível de resolver devido à sua natureza complexa e interconectada. Aos problemas ‘cruéis’ falta-lhes claridade em objetivos e soluções e estão sujeitos a restrições que impedem tentativas livres de risco para encontrar uma solução”[1] (tradução do autor).
Então porque é que planear e gerir cidades representa um problema tão malvado? Pelo seguinte: 1) os objetivos dependem da perspetiva dos vários stakeholders (partes interessadas), o cidadão de rendimentos altos tem pouco em comum com o cidadão de baixos rendimentos, os construtores estão orientados para o lucro, as autoridades devem estar preocupadas com o bem comum incluindo a poluição, os mais pobres, etc; 2) Otimizar a cidade é impossível porque os objetivos mudam, o contexto social e tecnológico muda, tudo muda; 3) A própria definição do problema é difícil de formular: qual é o problema da cidade? Tem preços das casas muito elevados? Então mas isso não é um veículo para a manutenção do património imobiliário? 4) Os problemas nunca estão resolvidos, na melhor das hipóteses seremos capazes de os resolver uma e outra vez. Assim definiram grosso modo Rittel e Webber num artigo de 1973, sim de 1973, o problema “malvado” de planear as cidades[2].
Esta complexidade de que falo acima é conhecida como complexidade dinâmica de um sistema, e a cidade é um sistema que exibe esse tipo de complexidade. A complexidade dinâmica é a que surge do funcionamento do sistema ao longo do tempo e devido às ligações de feedback segundo as quais mexer numa das suas componentes leva a alterações nessa mesma componente algum tempo depois. Passo a exemplificar com dois problemas fundamentais na cidade: congestionamento rodoviário e rendas das casas. Para resolver o problema do congestionamento rodoviário as autarquias e os governos optaram há umas décadas atrás por construir mais estradas, essa construção reduziu o tempo de viagem, redução essa que levou a que mais gente usasse o automóvel e ao mesmo tempo que fosse viver mais longe do local de trabalho o que as fez naturalmente dependentes do automóvel, esse aumento de utilização do automóvel levou a um aumento de tempo de viagem, aumento esse que leva à decisão de construir mais estradas e a alagar a sua capacidade, e assim sucessivamente naquilo que podemos chamar um aumento exponencial do tempo de viagem e de dependência do automóvel. Um ciclo que se reforça de consequências negativas. No setor das rendas, o congelamento das mesmas levou a um alívio no rendimento das famílias, e a que as pessoas pudessem continuar nessas casas, mas também levou a que o património se tenha degradado, e que com essa degradação os bairros se tornassem pouco atrativos. Com casas degradadas as pessoas procuraram edifícios mais modernos nas periferias, o centro foi ficando desocupado numa situação em que apenas os mais pobres e idosos lá vivem com rendas congeladas em casas degradadas ou os ricos que vivem em edifícios recuperados de luxo aproveitando a necessidade de revitalização desses mesmos edifícios. Ao longo do tempo esta mudança social vai levar a que esses bairros percam as suas características fundamentais. Não será o Sr. Joop da Bélgica, CEO reformado, a vender sardinhas no Santo António.
Esta complexidade dinâmica é ainda mais forte se ligarmos mobilidade e património edificado. De facto é essa relação entre acessibilidade e património construído que leva a determinado estado do sistema urbano, os seus tempos de viagem, as suas rendas, os seus preços por m2 de habitação e escritórios. Se aumentamos a acessibilidade ao criar mais transportes (seja estradas ou transportes coletivos) estamos a criar a oportunidade para o desenvolvimento dos usos do solo nas regiões abrangidas o que leva a um aumento de atividade nessas regiões o que leva, por sua vez, à necessidade de mais transportes, num ciclo exponencial de crescimento. É sabido que a maioria das cidades do Planeta cresceram sempre no último século.
Não existem cidades em equilíbrio estático onde possamos dizer: já está! Aqui vivem estas pessoas, que vão trabalhar ali todos os dias. Todas têm casa e todas têm emprego e vivem a uma distância aceitável dos locais onde desempenham as suas atividades. Para cada casa há uma pessoa/família, para cada emprego há um trabalhador. Mesmo que em algum caso ou outro esse equilíbrio tenha estado perto de ser atingido, por certo algo aconteceu que o tenha impedido. Nem os regimes autocráticos comunistas o conseguiram. Uma cidade que tenha muito sucesso é aliás uma cidade que se coloca na posição de ser um alvo de imigração, por exemplo, o que representa um aumento elevado de procura por casas de que as cidades muitas vezes não dispõem. Por isso há muitas cidades vítimas do seu próprio sucesso. Há uns anos quando visitei a cidade de Portland nos Estados Unidos, chocado pelo número de sem abrigo, perguntava porque é que ali também passavam por aquele flagelo (outras cidades como São Francisco ou Berkeley são bem mais famosas pelo fenómeno). Ao que parece Portland estava a conseguir gerir bem o problema e estava a tratar bem os seus sem abrigo. Contudo a informação espalhou-se e muitos dos sem abrigo de outras cidades decidiram que era em Portland que queriam ser sem abrigo. Dificilmente se resolvem problemas desta natureza com políticas de bolha sem articulação entre políticas locais, regionais, e nacionais.Então não há nada a fazer? Estamos condenados a viver com os problemas? Quando estes surgem tentar apenas resolve-los como podemos? Ninguém tem culpa e ninguém tem a solução? Não há bala de prata por isso desiste-se?
Não é bem assim. Como digo neste artigo estes problemas já são conhecidos há anos e há formas de os prever e debelar mas isso exige conhecimento técnico e capacidade de implementação de medidas detalhadas e avançadas que não cabem nos powerpoints. Medidas e políticas de que se conheça pelo menos uma estimativa dos seus resultados. De facto a resolução destes problemas não pode ser dada a resolver a um ministro ou outro quando a tragédia já está instalada. É preciso que haja acompanhamento técnico do setor ao longo dos anos com detalhe na informação e capacidade de antecipação baseada em modelos rigorosos do funcionamento das principais variáveis. Tenho acompanhado o comentário de colegas na televisão e é absurda a décalage entre o conhecimento técnico que existe em Portugal, que é elevado, pelo menos em algumas universidades, e a política nacional fechada sobre as suas ideologias e a bolha dos partidos.
Marcelo Rebelo de Sousa dizia esta semana: “olhando para o pacote de medidas, que é muito grande, não é possível ter um ideia clara do que está lá dentro. Ontem foi apresentado o melão, agora é preciso abrir o melão e olhar para cada lei e ver o que cada uma delas diz”[4]. Referia-se o presidente a cada uma das leis e o que cada uma irá expressar em concreto. A alegoria do melão faz todo o sentido mas na minha perspetiva está incompleta. As medidas podem ser muitas, mas o problema dos melões é que nunca sabemos se são maduros ou verdes antes de os abrir, no caso deste melão temo que o abrimos e continuemos sem saber nada sobre o seu sabor porque o efeito de qualquer medida sobre o setor está sujeita ao tal sistema complexo do funcionamento das cidades. É até bem possível que algumas destas medidas trabalhem no sentido da pioria do sistema que se quer alterar. Não seria a primeira vez.
O leitor olhará para este artigo e pensará que o que desejo é uma espécie de tecnocracia a governar Portugal. E estará correto. Portugal está muito afastado dessa capacidade tecnocrata de resolver os problemas. Uma dos opiniões mais veiculadas durantes estes dias de discussão sobre estas medidas foi a de que as pessoas nem sequer se precisam de preocupar com a medida sobre as casas vazias porque o sistema de administração pública nunca seria capaz de implementar tal coisa. Temo que seja mesmo verdade. Qualquer instrumento público de tal envergadura precisa de sistemas de administração pública à altura da sua implementação de que Portugal não goza. Não seria melhor fazer-se primeiro o básico? como implementar realmente a triplicação do IMI para casas devolutas[5]? ou resolver celeremente as disputas de partilhas para que possam estar mais casas disponíveis? Onde está o resultado de todos esses programas anteriores para que possamos compreender o que faz falta? Não havia uma nova geração de políticas públicas para a habitação? Já se implementou alguma coisa? O que é que se concluiu dessa implementação? Quem é que faz o seu acompanhamento técnico?
Gonçalo Homem de Almeida Correia é doutorado em transportes pela Universidade Técnica de Lisboa (Instituto Superior Técnico) e agregado em sistemas de transportes pela Universidade de Coimbra. Tem uma carreira universitária de mais de 12 anos sendo atualmente Professor na Universidade Técnica de Delft, Países Baixos, e Professor convidado na Universidade de Beijing Jiaotong em Pequim, China, nos seus programas de engenharia e planeamento de transportes.
[1] What are Wicked Problems? | IxDF (interaction-design.org)
[2] 1973 Rittel and Webber Wicked Problems.pdf (sympoetic.net)
[3] Land-Use Transport Interaction: State of the Art by Michael Wegener, Franz Fuerst :: SSRN
[4] Marcelo compara medidas para a habitação a um melão: Só se sabe se é bom depois de abrir – Política – Jornal de Negócios (jornaldenegocios.pt)
[5] Estas autarquias vão ter IMI a triplicar para casas devolutas – ECO (sapo.pt)