Vai de férias? Leia. Não vai de férias? Leia ainda assim. Apesar de o Verão não estar bem Verão, ou talvez por isso, o convite à leitura com tantos dias tão grandes é quase incontornável.

Recomendo, assim, dois livros que me parecem trazer alguma novidade ao panorama de leituras para estas férias (ou período estival). Um, Mentes Digitais, vale bem pelo conteúdo e também pelo facto de ter sido escrito por um português de mérito: Arlindo Oliveira, Professor Catedrático e Presidente do Instituto Superior Técnico. Outro, Homo Deus: uma breve história do amanhã, escrito originalmente em hebraico, em 2015, está a impactar o pensamento Ocidental de há uns tempos e também neste Verão. A julgar pelo número de leitores, mas também pela inegável pedrada no charco, torna-se incontornável. O primeiro e o segundo livro têm edições em inglês, como em português, e parecem ser, pois, obrigatórios para estas férias.

Algo em comum entre os dois? Bom, certamente que o lastro digital com que nos defrontamos é um traço comum às duas obras.

O segundo livro, Homo Deus, é uma versão interessante e alargada do que representam, aos dias de hoje, os dados.

O dataísmo como paradigma.

E os organismos como algoritmos que processam dados.

Aliciante, neste livro, o ângulo de abordagem, focando a interação e cooperação dos diferentes seres humanos, sua organização e sobretudo comunicação.

Há, segundo o autor, um conjunto de construções intersubjetivas que movem os humanos a uma proximidade e à construção de um coletivo. E esse coletivo, bem como o significado que se retira das interações e construções relacionais permite uma construção com significado onde pensamentos e ações conduzem a realizações, consequências e aprendizagens. E também evolução.

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Os animais jogam noutro tabuleiro, com outras regras, pela incapacidade que têm demonstrado ao longo dos anos de se relacionarem (comunicarem) com significado a larga escala. E parece que a diferença não estará necessariamente ao nível da inteligência. Ou da menor inteligência de alguns animais face ao homem. Mas precisamente na capacidade (incapacidade) de comunicarem e se organizarem.

Tentador neste texto, também, é perceber a emergência e evolução de um humanismo quase religioso, ou de um humanismo como religião.

O homem que se adora e adora a humanidade em detrimento de uma entidade (Deus) que lhe é exterior.

Os homens, os seus projetos, determinação e vontades tornam-se dominantes e o Deus que outrora estava fora do homem passará a estar dentro dele.

E a procura é (será) pela imortalidade, poder, eventualmente felicidade. A evolução para uma realidade totalmente antropocêntrica conduz a um novo desenho global, uma cada vez “melhor” organização e, quiçá, a novas formas de ver os estados, a religião, as empresas, o dinheiro.

A ética e os valores passam a estar dentro do homem e não fora dele pelo que a organização será cada vez mais antropocêntrica, de trocas e organização/comunicação (e organizações) de homens.

Tecnologicamente falando, este novo “centro” vem permitir a criação de uma espécie de super-homem (Homo Deus) onde uma das suas habilidades será, precisamente, preservar-se eternamente (vida eterna).

Porá o homem a tecnologia ao serviço de si próprio para se preservar para além do tempo? Ou dominando o tempo?

Se o homem for, de facto, um conjunto de algoritmos alimentados por dados podemos levar este pensamento longe.

Desta forma, Homo Deus explora os projetos, os sonhos e os pesadelos que moldarão o futuro: da morte à vida artificial.

Numa sinopse na web aparece uma qualquer referência/condensado do tipo da que deixo abaixo e que me parece particularmente concisa, poderosa e útil para sugestionar um potencial leitor.

A guerra, as grandes guerras, quase desapareceram. As formas de guerra são, hoje, bem diferentes.
Será, também hoje, mais provável cometer-se suicídio do que morrer-se num conflito armado.

A fome tem tendência a desaparecer.

O risco de obesidade é mais elevado que o risco de fome.

A morte tornou-se um tema técnico. Ainda não simples (como se poderá imaginar) mas…técnico.

Não alcançámos a igualdade — mas estamos perto de alcançar a imortalidade.

A história começou quando os homens inventaram os deuses e terminará quando os homens se transformarem em deuses.

Neste contexto, o que nos reserva o futuro?

De facto, um livro a não perder nesta altura de Verão.

O livro de Arlindo Oliveira, por outro lado, é também um livro sobre o homem e um certo homem deus. Ou um homem de (e com) tecnologia. Não será complexo adivinhar – digo eu – o que povoa, a respeito do futuro, a mente de um engenheiro eletrotécnico. Há que ler, porém, este livro pois não é mais que um tratado sobre muita coisa e, para um engenheiro como eu, toca muitas das dimensões que gostamos de “relembrar”.

No início do livro, se quisermos resumir, somos brindados com a velocidade da expansão tecnológica e o tempo cada vez mais curto entre novos avanços tecnológicos (e novas disrupções).

O efeito da Rainha Vermelha, por analogia com A Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Caroll, é evidente: “É preciso correr-se o máximo possível para se ficar no mesmo lugar”.

Assim, à medida que a evolução ocorre, os organismos tornam-se cada vez mais sofisticados. Não para adquirem uma vantagem competitiva. Antes para se manterem vivos.

Cada geração que aí venha será, então, ultrapassada ainda de forma mais rápida que a geração anterior. E ficará mais depressa mais obsoleta. Ou terá de correr ainda mais!?

As revoluções tecnológicas são revisitadas. E a revolução com propriedades exponenciais. Sendo que as propriedades das evoluções exponenciais são igualmente explicadas. Os seus impactos no homem e na humanidade expostos. De tal forma que bastará o exemplo lendário do pedido do inventor do xadrez ao imperador da China.

Apenas um bago de arroz para o primeiro quadrado do tabuleiro. Dois para o segundo. Quatro para o terceiro, e assim sucessivamente até ao quadrado número 64. Com esta cadência, que parece simples de cumprir, lá para meio do tabuleiro o Imperador terá percebido que a quantidade de bagos de arroz pedidos, aparentemente simples, era tão grande que o reino não tinha produção para tal. Se o número de bagos de arroz duplicar a cada quadrado, no final teremos 264– 1 (dois elevado a 64 menos 1) bagos o que dará para alimentar muitos milhares de pessoas durante muito tempo.

O caminho prossegue com Maxwell e as leis dos campos eletromagnéticos. Aqui confesso que voltei, feliz, ao Instituto Superior Técnico (e a umas versões simplificadas da eletrotecnia de liceu) e à regulação dos campos eletromagnéticos de quase todos os dispositivos elétricos e eletrónicos.

O caminho passa, também, pela evolução do número de transístores nos microprocessadores (Lei de Moore) para acabar na economia da Internet e do mundo digital.

É nesta fase que surge o computar. O computador explicado. A algoritmia. E o cérebro humano como um computador imenso, complexo, que executa cálculos que podem ser reproduzidos por um computador digital. Um computador digital poderia/poderá (em princípio?) emular o cérebro com um qualquer grau de precisão desejável. E deverá?

Daqui à procura da conceção de máquinas inteligentes vai um passo. Passo esse que agrega Inteligência Artificial.

Viagem e apetite lançados e surge Darwin e A Origem das Espécies. Com um tão enorme impacto na forma como hoje pensamos que, mais que provavelmente, terá lançado bases, também, para um novo paradigma sobre o homem e os primórdios de uma nova explicação evolucionista.

Está feita a ponte para as células, os corpos e os cérebros humanos: Homo sapiens é o centro de mais uma etapa do livro de Arlindo Oliveira (na verdade, Sapiens é o nome do primeiro livro escrito pelo autor de Homo Deus, Yuval Harari, e daqui ao facto de ambos os livros, com perspetivas e olhares diferentes, caminharem quase lado a lado passa a ser uma simples constatação).

O cérebro e o seu funcionamento vêm depois. Numa nova etapa deste belo texto. E o paralelo cérebro humano–máquina emerge.

E agora, quo vadis? E o cérebro humano, dito inteligente, será o único capaz de albergar essa mesma inteligência?

Seremos capazes de criar mentes digitais que mimetizem cérebros humanos?

E que mentes digitais serão essas? Parceiras, concorrentes?

Como evoluiremos a partir daqui?

E nesta fase – a das muitas perguntas que nos faremos –  é bom retornar ao Homo Deus para perceber o sentido desta nova religião, também ela emergente: o humanismo, ou uma espécie de antropocentrismo.

Até onde? Até criarmos deus no homem e o tornarmos eterno! Será?

A história, essa, e a confirmar-se o que se intui, acabará certamente por aí.

Professor Catedrático; Diretor Académico – Formação de Executivos, NOVA SBE – Nova School of Business and Economics