Se há atividade em que deveras aprecio a aplicação de um rigor ímpar é o do emprego das palavras. Quer no registo oral, quer no escrito, os termos adquirem conteúdo a partir dos sentidos que são partilhados nas relações sociais. Neste sentido, a qualidade de sermos precisos/as é de valorizar, dado que transmitimos uma imagem de pessoas com seriedade, integridade e espírito crítico e reflexivo relativamente às coisas do mundo.
Ora, desde há alguns meses que o uso de uma expressão para designar um conjunto de cidadãs/ãos me deixa com várias reticências acerca da sua conotação como símbolo de uma marginalização daquelas/es. Falo de “imigrantes ilegais”. Talvez por estar tão habituado a que sejam as ações, e não as pessoas, a serem classificadas como proibidas é que me custa olhar para este conceito de maneira leve. Por exemplo, quando, através do consentimento, como sociedade, definimos que fumar na escola, utilizar o telemóvel na condução ou proferir e/ou redigir argumentos discriminatórios contra terceira/o com base nos seus atributos corporais, sexuais, raciais, religiosos ou classistas são comportamentos que merecem interdição, sob pena de se poder sofrer uma punição devido à sua perpetração, estamos sempre a ter em conta que definimos estas coibições para certo tipo de condutas, e não pelos indivíduos que as levam a cabo.
Precisamente porque atribuir a alguém a denominação de “ilegal” é um ato dúbio sob o ponto de vista social(ológico), orientando a condição de ilicitude para o sujeito e confundindo a sua situação com a sua identidade, já não é nova a discussão sobre outros possíveis adjetivos para classificar as pessoas que saem do seu país e entram noutro sem terem a documentação necessária em ordem e dia para se fixarem no segundo de um modo regulado e controlado pelo Estado. Têm sido, pois, sugeridos os atributos “imigrantes indocumentadas/os”, “irregulares” ou mesmo “não autorizadas/os”. Se a primeira catalogação é aquela que parece trazer maiores vantagens em termos de justeza perante os indivíduos que se encontram na circunstância descrita no início do parágrafo, as outras duas parecem-me, por sua vez, bastante infelizes na forma como definem tais cidadãs/ãos. Abaixo abordo a minha perspetiva sobre as mesmas.
Imigrantes indocumentadas/os
Não há muito a apontar a esta designação. Efetivamente, as/os imigrantes que não têm em sua posse provas legais que possibilitem a sua entrada num país e a fixação no mesmo para lazer ou trabalho encaixam-se nesta categoria, não se encontrando documentadas/os e necessitando de cooperar com as autoridades do país de acolhimento no sentido de alcançar essa documentação requerida para o acesso a variados serviços locais.
Imigrantes irregulares
No que concerne a esta expressão, já padeço de alguma incompreensão. Afirmar-se que alguém é irregular revela-se um exercício de vaguidade. Irregular em que aspeto? Estamos a referir-nos a uma imprevisibilidade nos movimentos e nas reações aos fenómenos e aos outros? Ou de alguém cuja condição de imigração não se encontra conforme aquilo que é exigido no território onde pretende entrar? Ser-se irregular é, antes de tudo, aquilo que não tem regularidade, para depois ver acrescentada no seu significado a aceção ligada à censurabilidade das práticas.
No entanto, a irregularidade é vista por muitas/os como algo que deve ser condenado por constituir uma injúria contra as normas, o que retira possibilidades de uma existência real e profícua da pessoa nas diversas esferas sociais. Não obstante, geralmente ninguém é irregular por vontade própria, antes podendo sê-lo devido às vicissitudes da vida.
Imigrantes não autorizadas/os
De todas as designações, esta consiste na que me causa maior perturbação e comoção. Aparentemente, aquela/e que ultrapassar as fronteiras de um outro estado pode perder autorização de alguma coisa. Como se uma parte da expressão cívica e política se esfumasse rapidamente, os indivíduos não têm permissão para desenvolverem os seus hábitos e ofícios a partir de um dado limite que organiza o chão possível do impossível. Um metro de terra que pode ser pisado e transformado, outro metro que, indiferenciado do anterior, já não pode registar o caminho destes sujeitos.
Desenganem-se, todavia, as/os que identificarem nesta argumentação a vontade de que a fiscalização destas pessoas não aconteça. O que se pretende essencialmente advogar é que esse supervisionamento, mobilizado por boas intenções de bem-estar coletivo ao nível cultural, da economia ou da segurança, não deve ser promotor da eliminação das possibilidades de expressão individual e enclausurado na prática do poder coercitivo que se rege pelas letras da lei sem demonstração de flexibilidade ou de humanidade.
Num mundo sem fronteiras, pelo qual todas/os deveríamos lutar, em que a globalização se terá/teria cumprido de uma outra forma, não existirá/ria pedaço de estrutura física desmerecido. É difícil explicar com racionalidade as razões pelas quais a partir de um certo ponto o solo deixa de poder receber as pegadas daquelas/es que, na maior parte dos casos, procuram oportunidades depois de terem escapado de perigos.
Ilegal deveria ser rotular outra pessoa de ilegal. Torne-se ilícito o vício da falácia ad hominem em prol de uma conceção de diálogo igualitário com as diferenças, assumindo estas o semblante de seres humanos cujas ações é que devem ser avaliadas. A língua portuguesa sabe muito bem distinguir ser de estar. Saibamos também proceder a essa distinção.