José Manuel Fernandes decidiu escrever um artigo de opinião para dar conta da sua indignação para com a posição do Bloco de Esquerda sobre as PPP na área da Saúde. Porquê? Porque o Bloco defende que o orçamento do Serviço Nacional de Saúde não deve ser transferido para privados e que as PPP são uma renda absolutamente injustificada.

Veja-se lá que o Bloco de Esquerda considera que a natureza pública do Serviço Nacional de Saúde é absolutamente essencial para garantir a universalidade dos serviços e que o SNS não pode ser visto como um mercado, nem a saúde tratada como uma mercadoria.

José Manuel Fernandes não pôde admitir tal afronta e por isso indignou-se. Afinal estava o Bloco de Esquerda a criticar as empresas privadas que exploram a Saúde e a colocar em causa a sua renda de 450 milhões de euros. Vai daí, escreveu o seu artigo de opinião.

Passarei por cima do excesso de adjetivação desse artigo – que pode servir para a provocação, mas pouco serve para a discussão – e vou direto aos argumentos apresentados, complementando com informação que o autor não usou. Não sei se não o fez por desconhecimento ou por deliberada omissão; sei apenas que é informação pública e que poderia ter ajudado a enformar o seu raciocínio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Vamos então aos argumentos:

José Manuel Fernandes considera normal que privados estejam a explorar hospitais integrados no SNS. Mas não, isso não é normal. Aliás, é perigoso para o SNS e para os utentes.

Talvez não saiba que nos 4 hospitais atualmente em regime PPP participam uma miríade de empresas privadas, algumas nacionais, outras estrangeiras, algumas participadas por fundos de investimento, outras detidas por seguradoras. Cada uma destas entidades responde a acionistas que têm uma exigência: lucro e dividendos.

Como talvez não conhecesse este fato, deixo uma breve lista destas entidades: Amil, Teixeira Duarte, José de Mello SGPS, Hospital CUF Infante Santo, Hospital CUF Descobertas, Somague Concessões, Edifer Investimentos SGPS, Edifer Construções Pires Coelho & Fernandes, Quadrante, Fosun, Opway, Novo Banco e Dalkia.

Qual é o perigo nisto? São essencialmente dois: o primeiro, é termos hospitais a serem geridos em função dos interesses de acionistas e não em função do interesse dos utentes; o segundo é termos hospitais que no fundo não passam de participações que podem ser compradas e vendidas como se se tratasse de uma mercadoria. Nada disto respeita os princípios do Serviço Nacional de Saúde e por essa mesma razão não deve existir no SNS.

Mas José Manuel Fernandes diz que as entidades gestoras não estão a ter lucro nenhum com estes hospitais. E até cita o Tribunal de Contas sobre a PPP de Braga. Acontece é que não o cita na totalidade, em particular a passagem onde se diz que “o parceiro privado tem-se acomodado às propostas do parceiro público, “investindo” numa eventual renovação do Contrato de Gestão”.

Creio que nos devemos perguntar: se os privados não estão a ter nenhum lucro com os 450 milhões de euros que o Estado transfere para gerirem hospitais, porque razão estão tão empenhados em renovar os contratos? Será que a sua estrutura acionista é composta exclusivamente por beneméritos? Parece pouco razoável que assim seja. A resposta é uma: as PPP são um bom negócio para os privados.

Primeiro, há que lembrar que aquando da celebração dos contratos PPP, as entidades privadas previam taxas de rendibilidade na ordem dos 10%. Os privados e os acionistas ainda pretendem atingir esses lucros, por isso apostam tudo na renovação das PPP. O objetivo destas entidades é mesmo vir a retirar lucro deste negócio.

Segundo, as centenas de milhões de euros que recebem anualmente com os contratos PPP alavancam os negócios privados, dando-lhe capacidade de financiamento e endividamento para, paralelamente, fazerem crescer a sua rede de hospitais e clínicas privadas. 22% de todo o rendimento operacional da Luz Saúde é obtido com a PPP de Loures e cerca de 40% do negócio da José de Mello Saúde deve-se exclusivamente às rendas obtidas com as PPP de Braga e de Vila Franca de Xira.

Terceiro, a exploração dos hospitais PPP permite ganhos de escala aos privados conseguindo, por exemplo, que os fornecedores façam preços bem mais favoráveis para os seus hospitais privados.

Sim, para estas entidades a saúde é um negócio e sim, essas entidades privadas estão a absorver milhões de euros públicos para expandir o seu negócio privado. O mesmo que tem por objetivo concorrer e enfraquecer o SNS.

Mas José Manuel Fernandes apresentou mais dois argumentos, um pouco batidos para quem conhece o velho mantra de quem tem um preconceito ideológico para com o bem público. Segundo ele a gestão privada é mais eficiente e tem mais qualidade.

Vamos por partes, começando pelo argumento da eficiência:

Cita dois estudos encomendados por entidades gestoras de hospitais PPP que – surpresa! – concluíram a favor da gestão dessas mesmas entidades. Talvez devesse ter escrutinado um pouco mais esses estudos antes os usar como trunfo. Mas se não quiser acreditar nas minhas palavras, deixo-lhe as palavras do Bastonário da Ordem dos Médicos, num artigo a que pode aceder aqui e que transcrevo em parte:

“A comparação entre as entidades do SNS e as PPP com o custo por doente padrão levanta fortes reservas. No SNS consideram-se todos os custos incorridos para a prestação do serviço assistencial, incluindo as depreciações e manutenção do imobilizado e equipamentos, já nas PPP apenas se analisam as verbas que o Estado paga pela prestação assistencial, não entrando em linha de conta com os custos de gestão dos edifícios (13% a 17% dos custos totais).

Por outro lado, enquanto no estudo da PPP de Braga se utilizou como referência comparativa os Centros Hospitalares (CH) oficialmente definidos, na PPP de Cascais foi utilizado como referência o CH Cova da Beira, o hospital menos eficiente do Grupo C ao longo dos últimos anos (maior custo por doente padrão), o que enviesa qualquer análise. Se fosse utilizado como referência o CH Tâmega e Sousa, a poupança da PPP de Cascais seria negativa em qualquer cenário”.

Resumindo, não há poupanças e há hospitais públicos que até apresentam melhores indicadores deste tipo. Porquê, então, continuar com este negócio que apetece tanto aos privados, mas que não traz vantagem para o público? Ah, o tal argumento da maior qualidade do privado…

Antes de mais convido-o a consultar esta página de internet. É o benchmarking dos hospitais do SNS publicado pela Administração Central dos Sistemas de Saúde. Aqui poderá constatar que no que toca a desempenho assistencial, os hospitais PPP não se destacam pela positiva quando comparados com hospitais do SNS sob gestão pública. Aliás, na maior parte dos indicadores ficam atrás dos hospitais públicos. Há menos tempo de espera para consulta e para cirurgia nos hospitais públicos. Já os hospitais PPP são francamente piores em indicadores como sépsis pós-operatória.

Talvez lhe interesse também a leitura do estudo da Entidade Reguladora da Saúde que avalia as parcerias público-privadas na Saúde. Deixo-lhe aqui o link para consulta, mas posso desvendar-lhe a conclusão: não há diferenças entre hospitais sob gestão PPP e hospitais do SNS sob gestão pública. Explicando melhor: as PPP não representam vantagens em termos de eficácia, eficiência, qualidade e custos de regulação.

Por isso, recoloco a pergunta: porquê continuar com este negócio de transferir 450 milhões de euros por ano para privados quando ele não representa nenhuma vantagem para o público? É por não haver nenhuma resposta possível do ponto de vista do interesse público que o Bloco de Esquerda defende a não renovação das PPP.

Creio que é fácil de entender, mas a verdade é que teremos neste ponto uma divergência de fundo. É normal, o combate a rendas milionárias que alimentam grande grupos privados gera sempre muitas inimizades e levanta muitas indignações.

Isso não nos fará afastar um milímetro do essencial: defender o interesse público e o Serviço Nacional de Saúde. Esse é o objetivo do Bloco de Esquerda nesta discussão. Resta saber qual o objetivo de José Manuel Fernandes para vir defender as PPP e as suas rendas quando, se olharmos honestamente para a questão, vemos que elas não trazem nenhum benefício para o Estado ou para os utentes.

Deputado do Bloco de Esquerda