Há meio século, um economista largamente esquecido recebeu a notícia inesperada de que tinha sido laureado com o Prémio Sveriges Riksbank em Ciências Económicas em memória de Alfred Nobel. Friedrich A. Hayek ficou igualmente surpreso ao descobrir que partilhava o sexto Prémio Nobel de Economia com Gunnar Myrdal. As opiniões decididamente social-democratas do economista sueco não poderiam estar mais afastadas da perspectiva liberal clássica de Hayek.
Houve, no entanto, um ponto em comum entre estes dois improváveis co-galardoados. Tal como a Real Academia Sueca das Ciências observou no seu comunicado de imprensa anunciando os vencedores do Nobel de Economia de 1974, uma das razões para ambos os homens terem recebido o Prémio foi “a sua análise penetrante da interdependência dos fenómenos económicos, sociais e institucionais”. Myrdal, por exemplo, escreveu sobre as relações raciais na América de um ponto de vista interdisciplinar. O seu trabalho nesta área foi citado no julgamento Brown v. Board of Education do Supremo Tribunal dos EUA.
Como ilustram Bruce Caldwell e Hansjoerg Klausinger em Hayek: A Life, 1899–1950, Hayek fez a sua própria viragem extra-económica no final da década de 1930, quando o economista austríaco procurava compreender por que razão o mundo ansiava a salvação através de um maior controlo estatal sobre a economia e a sociedade em geral. Este processo acelerou quando Hayek ingressou no Comite de Pensamento Social da Universidade de Chicago em 1950.
Um tema comum que marcou o estudo de assuntos como psicologia, ciência política e direito por Hayek foi a convicção de que as ciências sociais, incluindo a economia, tinham tomado um rumo errado quando procuraram seguir tão de perto quanto possível os métodos usados nas ciências naturais. O que Hayek chamou de “cientismo” distorceu posteriormente a economia, ao concentra-la apenas naquilo que é mensurável e observável. Embora isso possa funcionar nas ciências físicas, Hayek sustentava que a confiança excessiva nesta metodologia estava fadada a produzir conclusões enganadoras quando aplicada ao tipo de interacções humanas e de conhecimento que são o objecto da economia. Era um tema ao qual Hayek regressaria continuamente, até porque tocava no cerne da natureza da economia e do seu potencial para contribuir para o bem-estar humano.
“Velha” versus “Nova” Economia
Hayek não foi o único economista a lamentar a viragem cientificista da economia do pós-guerra, na sequência dos esforços dos discípulos de Keynes para concentrar a disciplina em macroagregados quantificáveis que, acreditavam muitos economistas nessa altura, poderiam fornecer-lhes a informação de que os governos e os tecnocratas precisavam para dirigir e gerir a economia. O colega liberal de Hayek, Wilhelm Röpke, escreveu longamente sobre o mesmo assunto. No ensaio de 1952 “Keynes and the Revolution in Economics”, Röpke observou que a “nova economia” incorporava uma lógica completamente diferente daquela da “velha economia” (pré-keynesiana). Foi, no entanto, Hayek quem explorou de forma mais sistemática as origens filosóficas desta mudança assim como as suas consequências políticas e económicas.
O mais famoso dos estudos de Hayek nesta área foi o seu artigo de 1945 na American Economic Review “The Use of Knowledge in Society”. O seu alvo imediato era a tese de economistas de tendência esquerdista, como o socialista polaco Oskar Lange, de que o planeamento económico era compatível com o funcionamento do mecanismo de preços. Nesta medida, o artigo de Hayek fazia parte do debate sobre o cálculo socialista que vinha sendo discutido desde a década de 1920. O que tornou o artigo de Hayek de 1945 distinto foi o facto de abordar algumas das questões epistemológicas subjacentes que impulsionaram este debate: mais notavelmente, a perene questão sobre o que a razão humana pode realmente saber. Na opinião de Hayek, este foi o ponto decisivo que tornou o planeamento económico um exercício geralmente ineficaz e potencialmente perigoso.
“Hoje”, afirmou Hayek em 1945, “é quase uma heresia sugerir que o conhecimento científico não é a soma de todo o conhecimento”. No entanto, sublinhou, existem outros tipos de informação, muitas das quais são específicas dos indivíduos. Estes incluem “conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e lugar”. A posse de tais informações tácitas e, portanto, em grande parte não mensuráveis, dá, observou Hayek, “praticamente a cada indivíduo… alguma vantagem sobre todos os outros, na medida em que possui informações únicas das quais pode ser feito um uso benéfico, mas das quais o uso só pode ser feito se as decisões que delas dependem forem deixadas ao indivíduo ou tomadas com sua cooperação activa.”
Este estado de coisas também cria desafios significativos para o planeamento económico estatal, na medida em que este simplesmente não consegue acompanhar as mudanças incrementais nas, e trocas de, informações em curso às quais os indivíduos reagem constantemente ao nível micro daquilo que Hayek chama de “economia de conhecimento.” Nenhum planeador pode conhecer o enorme número de factores de mudança (incluindo as preferências em constante alteração de milhares de milhões de indivíduos à medida que reagem a variações intermináveis de preços) que afectam os preços de milhões de bens e serviços em qualquer momento no tempo. A ênfase pós-keynesiana na recolha e acção sobre macroagregados de formas limitadas de informação que se prestaram à medição, desencoraja positivamente os governos e os tecnocratas desle logo a sequer pensarem nestes incognoscíveis. Isto conduzirá inevitavelmente a erros políticos significativos, até porque envolve, como escreveu Hayek, uma vontade de “assumir afastado o problema e desconsiderar tudo o que é importante e significativo no mundo real”.
Uma espécie de “vingança”
Nas três décadas que se seguiram à publicação do ensaio de Hayek de 1945, as economias ocidentais em geral desfrutaram de um crescimento económico estável, de um reduzido desemprego e de uma inflação baixa. Contra Hayek, parecia que os governos auxiliados por aqueles versados na nova economia poderiam orientar com sucesso a vida económica para a realização de fins predeterminados e muito precisos. A “velha economia”, personificada por Hayek e alguns outros liberais, parecia morta.
A confiança nestas propostas começou a enfraquecer no final da década de 1960, à medida que economias ocidentais, umas após as outras, começaram a experimentar o que os implementadores da “nova economia” consideravam um cenário improvável: elevado desemprego acompanhado por uma inflação crescente. Estas circunstâncias e a atribuição do Prémio Nobel a Hayek em 1974 proporcionaram uma atenção renovada à crítica do agora idoso economista ao planeamento e às ideias económicas alternativas às quais estava associado.
Ninguém teria ficado surpreendido se Hayek tivesse escolhido usar a sua palestra do Nobel para se debruçar sobre os problemas económicos imediatos da década de 1970 ou se envolver numa retrospectiva do tipo “eu avisei”. Hayek, no entanto, decidiu alargar as questões epistemológicas abordadas no seu artigo de 1945 e noutros artigos – mais notavelmente, o seu ensaio de três partes “O Cientismo e o Estudo da Sociedade”, publicado na Economica em 1942, 1943 e 1944. Isto é o que faz da palestra de Hayek sobre o Prémio Nobel, “A Pretensão do Conhecimento”, uma das suas mais importantes contribuições intelectuais e razão pela qual é recompensadora uma leitura cuidada de Hayek, 50 anos depois de a ter proferido em Estocolmo.
A arrogância custa caro
Hayek começou a sua palestra na cerimónia do Nobel com a observação algo polémica de que os economistas estavam a ser chamados a salvar o mundo livre da “inflação acelerada” que, insistiu Hayek, resultou de políticas que “a maioria dos economistas recomendou e até exortou os governos a seguirem”. Na opinião de Hayek, isto era sintomático da medida em que os economistas tinham “confundido tudo”.
No centro desta crise económica, afirmou Hayek, estava “a atitude ‘científica’” que estava subjacente à economia do pós-guerra. Durante três décadas, afirmou, os economistas insistiram que havia “uma correlação positiva simples entre o emprego total e a dimensão da procura agregada de bens e serviços”. Isto, acrescentou Hayek, levou “à crença de que podemos garantir permanentemente o pleno emprego, mantendo a despesa monetária total num nível apropriado”.
Para Hayek, no entanto, o que importava era que subjacente a esta convicção estava uma forte dependência de “dados quantitativos”. Mas, segundo Hayek, a capacidade de tais dados para captar fenómenos tão complicados como a inflação e o desemprego era “necessariamente limitada”. Existem, reconheceu Hayek, um grande número de factos que não podemos medir e sobre os quais, na verdade, temos apenas algumas informações muito imprecisas e gerais. E porque os efeitos destes factos em qualquer caso particular não podem ser confirmados por provas quantitativas, eles são simplesmente ignorados por aqueles que juraram admitir apenas o que consideram como provas científicas: prosseguem então alegremente na ficção de que os factores que podem medir são os únicos que são relevantes.
Dito de outra forma: só porque não se pode medir algo, não significa que não exista ou não seja importante. Decorre daqui, argumentou Hayek, que calcular grandes agregados de um número limitado de coisas que se prestam à medição, e depois tentar desenvolver teorias para explicar as relações entre tais agregados, estava fadado a produzir explicações para o aumento da inflação, por exemplo, insuficientemente atentas ao que acontecia ao nível micro da economia.
Hayek ilustra este ponto examinando o fenómeno de como os preços e salários são formados numa economia de mercado. “Na determinação destes preços e salários”, explicou Hayek, “entrarão os efeitos da informação específica detida por cada um dos participantes no processo de mercado – uma soma de factos que na sua totalidade não podem ser conhecidos pelo observador científico nem por qualquer outro cérebro.” Consequentemente, os economistas não podem saber, por mais sofisticado que seja o modelo econométrico, “que estrutura específica de preços e salários a procura igualaria a oferta em toda a parte”.
Isto não significa que Hayek pensasse que usar a matemática na economia fosse uma perda de tempo. Tais técnicas, notou ele, podem ajudar a traçar padrões gerais. No entanto, não podem encapsular tudo o que determina a formação dos preços porque nenhum modelo consegue captar toda a informação necessária para moldar os preços.
Isto, salientou Hayek, tinha sido bem compreendido pelos filósofos do direito natural do século XVI, como os jesuítas Luis Molina e Juan de Lugo, que estudaram na Universidade de Salamanca. Eles enfatizaram, comentou Hayek, “que o que chamavam de pretium mathematicum, o preço matemático, dependia de tantas circunstâncias particulares que nunca poderia ser conhecido pelo homem, mas era conhecido apenas por Deus”.
Sem humildade, não há liberdade
É aí que reside o significado normativo e político da palestra Nobel de Hayek. No seu cerne estava um apelo aos economistas para evitarem a húbris encorajada pelo cientismo. Não se tratava apenas de manter a integridade da disciplina como ciência social. Era também uma questão de ser realista relativamente aos poderes preditivos da economia: um realismo que deveria desencorajar expectativas irrealistas por parte dos governos e dos cidadãos sobre aquilo de que a economia, a política económica e os economistas são capazes.
Calibrar corretamente tais expectativas era crucial para Hayek por duas razões. Em primeiro lugar, insistiu: “O conflito entre o que no seu estado de espírito actual a sociedade espera que a ciência alcance para satisfazer as esperanças populares, e o que está realmente ao seu alcance é um assunto sério”. Esperanças exageradas levam os eleitores a imaginar que os governos podem obter resultados económicos simplesmente puxando várias alavancas intervencionistas, e os líderes políticos e tecnocratas a comportarem-se como se pudessem fazê-lo. Esta é uma receita para a decepção e, potencialmente, para perturbações profundas no sistema político.
A segunda razão para a preocupação de Hayek era, numa palavra, civilizacional. Quando a economia e a política económica são infectadas pelo vírus do cientismo, começamos a imaginar que podemos melhorar a ordem social à vontade através do controlo de cima para baixo. Tal “esforço fatal”, como Hayek o descreveu, alimentado pela recusa em reconhecer “os limites insuperáveis do seu conhecimento”, pode tornar alguém “não apenas um tirano sobre seus semelhantes, mas também pode muito bem torná-lo o destruidor de uma civilização que nenhum cérebro projetou, mas que cresceu a partir dos esforços livres de milhões de indivíduos”.
Deste ponto de vista, o significado da palestra de Hayek no Nobel foi além da economia. Foi mesmo um apelo genérico a algo que parece perpetuamente suspenso: a humildade intelectual e política. Para Hayek, o sucesso da melhoria da sociedade através da economia ou de qualquer outra ciência social baseava-se na aceitação de que existem áreas da vida humana sobre as quais, disse ele à sua audiência de suecos em 1974, “não podemos adquirir o conhecimento completo que tornaria o domínio dos acontecimentos possível.”
Na altura em que Hayek pronunciou estas palavras, as dúvidas sobre a capacidade do planeamento estatal para dominar os assuntos económicos estavam de novo a ficar na moda. Seis anos após a sua palestra, Ronald Reagan e Margaret Thatcher estavam no poder e prometiam uma ruptura decisiva com as políticas intervencionistas do pós-guerra.
Esse mundo parece muito distante do de hoje. Grande parte da direita juntou-se à esquerda na insistência de que o Estado pode e deve ser usado para produzir resultados económicos muito específicos, através de meios como bancos centrais activistas, proteccionismo, política industrial e maior regulamentação. Até os controlos de preços estão a ser cogitados em todo o espectro político.
A dificuldade com tantas destas políticas é que elas negam a observação de Hayek de que não somos deuses nem Deus e que, portanto, nem os economistas nem os funcionários do Estado possuem as qualidades divinas de que necessitariam para superar as sérias limitações criadas pelo problema do conhecimento. Tais eram as convicções de Hayek sobre este assunto que expressou dúvidas durante os seus comentários no jantar do banquete Nobel sobre a prudência de criar o próprio prémio Nobel de economia. Entre outras coisas, Hayek temia que isso conferisse “a um indivíduo uma autoridade que em economia nenhum homem deveria possuir”.
A humildade geralmente não é encontrada entre aqueles que tentam construir o céu na terra ou que querem salvar o mundo através da tecnocracia. É, no entanto, algo que nos mantém em contacto com a realidade da economia, da sociedade e de nós próprios. É isso que faz da mensagem Nobel de Hayek sobre a nossa capacidade de conhecimento um exercício tão poderoso de dizer a verdade para sempre.
Nota Editorial: Artigo publicado originalmente em Inglês em 24/Jan/2024 na Law & Liberty.
Samuel Gregg é Doutorado em Filosofia Moral e Política Económica pela universidade de Oxford e Mestre em Filosofia Política pela universidade de Melbourne. É Distinguished Fellow em Política Económia e Senior Research Faculty na American Institute for Economic Research. É membro da Mont Pèlerin Society e do conselho académico de numerosas instituições internacionais. Autor de 16 livros, escreve regularmente na imprensa internacional e nas mais prestigiadas publicações académicas europeias e americanas, sendo citado com frequência nos media.
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