A sociedade mediática em que vivemos tem por hábito assinalar quadras festivas, convocando várias artes para evocar celebrações de cariz religioso ou profano. Como que numa roda cíclica, a nossa sociedade habituou-se a ver repetidamente certas manifestações artísticas em datas concretas do calendário. Exemplo disso são os típicos “filmes de época natalícia” que deambulam pelos nossos cinemas ou televisores durante o intenso mês de dezembro.
O período pascal não é exceção. Nesta quadra assiste-se a exibições cinematográficas debruçadas sobre vários episódios das sagradas escrituras, com especial relevo para as passagens mosaicas e para os evangelhos do Novo Testamento. Há-las para vários gostos e idades, umas mais e outras menos pedagógicas, umas mais e outras menos fiéis ao livro sagrado. No cinema avultam as evocações a esta quadra. Mas porque nem só de cinema vive o homem, mas também da palavra escrita, a literatura pode ganhar corpo na nossa vivência pascoal.
A Páscoa convida à reflexão, abrindo-nos a porta a leituras mais introspetivas, plenas de sentido e de uma riqueza vivificadora. Sem descurar o cânone bíblico, há, contudo, um vasto corpus literário que pode ser objeto de apreço nesta época, tanto por leitores crentes como descrentes, leigos ou eruditos. Nessa experiência literária poder-se-iam incluir livros fundamentais de cariz teológico ou filosófico, como as obras de Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino, ou também de cariz hagiológico ou hagiográfico, dedicados à narrativa biográfica de almas que trilharam os caminhos da fé.
Sem desconsiderar tais opções, gostaria de trazer ao leitor sugestões literárias de leitura mais simples e pragmática, porquanto se definem de entendimento mais claro, mas não de menos rigor estilístico e sentido valorativo, porque também é na simplicidade das palavras que muitas vezes se encontra a essência da vida.
Numa tríplice sugestão, elenca-se como pedra de toque inicial a obra do Padre António Vieira «Sermão de Santo António aos Peixes», obra de relevo nacional e que é de leitura obrigatória para os nossos estudantes do ensino secundário. Imergir neste “sermão” nesta quadra pascal é permitir-se escutar-se a si mesmo, simultaneamente escutando o outro numa relação de alteridade num mundo cada vez mais ensimesmado. A força da retórica das palavras acompanhada da intensidade prosódica, indagam o leitor sobre o mundo de surdos-mudos em que perigosamente as nossas sociedades contemporâneas se têm vindo a converter. É profundamente atualista, e independentemente do seu cunho religioso alusivo a uma época histórica, constitui ainda aos dias de hoje uma lanterna axiológica.
Olvidada muitas vezes dos cânones literários, a obra de São João da Cruz constitui uma referência literária inegável pautada pela sua simplicidade e simultânea profundidade simbólica. O poema «Cântico Espiritual» reveste a natureza das palavras simples, mas dotadas de significado profundo, que colocam o leitor a errar no caminho do entendimento mais direto e imediato, ou, se para tal se abrir, numa outra dimensão de comunhão mística. Tendo como fonte dialogante o texto bíblico «Cântico dos Cânticos», o poema de São João da Cruz revela a experiência de uma alma devota em busca da plena comunhão com o divino.
No encalço do recém-celebrado dia de São Patrício, «O Grito do Gamo» apresenta-se como uma coletânea de poemas de origem gaélica, sobre a fé e o sagrado. Num tempo de rejuvenescimento como o da quadra pascal, a poesia devocional escrita na quietude da natureza exorta-nos à comunhão com a plenitude da Criação. Também aqui a simplicidade das palavras ganha musicalidade com a expressão dos símbolos, todos eles imbuídos de uma dimensão profunda, unidos à graça e ao louvor divino.
Sendo a Páscoa uma quadra que se inicia com o recolhimento, exortando depois à reflexão, e que culmina com a celebração do domingo pascal, as obras acima sugeridas permitem ao leitor embeber-se do espírito desta época através da arte literária, experienciando cada um destes três momentos.