Quando acompanhada por um manual de instruções, a aquisição de um objecto por montar ou de um electrodoméstico desconhecido é causa de concentração e fúria. A maior parte dos autores daqueles manuais não tem uma posição jovial acerca da natureza humana. Acredita que a experiência é a mãe de todas as coisas; e que a humilhação é o conteúdo de todas as experiências.

Há duas espécies de manual de instruções. A primeira, característica do mobiliário escandinavo, consiste no cultivo de legendas nas línguas de trabalho da União Europeia, e de ilustrações alusivas. A segunda é característica do electrodoméstico asiático; contém séries de sinais gráficos numa língua que depois se verifica ser uma brincadeira cruel, como o espanhol dos palhaços ou o português das ementas.

Através dos manuais de instruções o comprador é punido por ter tido o dinheiro necessário para comprar aquilo que comprou.   À punição correspondem penas de trabalho manual forçado. O objectivo comum ao design escandinavo e à electrodomesticidade asiática é a reeducação ideológica. Os manuais de instruções estão compostos de modo a prolongar o mais possível o tempo dessa reeducação.

Os cientistas políticos ligaram estas duas espécies de manual de instruções a duas correntes ideológicas principais. A primeira é a social-democracia: a social-democracia caracteriza-se por encorajar que pessoas ricas ou remediadas façam coisas características de pessoas mais pobres que elas; ou coisas que, quando eram pobres, teriam feito; o objectivo é lembrar constantemente a todos aqueles que são de facto ricos que são potencialmente pobres. A ideia de alguém remediado se ver obrigado a montar uma estante com o suor do seu rosto, e mesmo a transportá-la, satisfaz os principais propósitos ideológicos da social-democracia.

A segunda corrente é o comunismo, hoje principalmente asiático: embora ao contrário da social-democracia não tenha objecções de princípio à existência de ricos, caracteriza-se historicamente por fazer sentir a ricos, remediados e pobres que nunca conseguirão perceber bem aquilo que lhes está a ser explicado; o objectivo é lembrar a todos que são potencialmente estúpidos e que precisam da ajuda de uma raça de letrados violentos. O teste da igualdade para o comunismo asiático é ninguém conseguir acertar o relógio do despertador eléctrico.

É verdade que depois da reeducação política nos podemos sentir uma autoridade em estantes; ou inclinados à vigília produtiva. São porém ilusões temporárias: duas horas depois já nos esquecemos dos nossos triunfos. Quando a estante cai ou muda a hora temos de reaprender tudo. O conhecimento que tínhamos pago em humilhação e bolhas parece-nos tão remoto e está tão esquecido como os passos que foram necessários à invenção da agricultura. A fraca memória da espécie e a incorrigibilidade da natureza humana sugerem que nem a social-democracia nem o comunismo são doutrinas viáveis: a menos que o seu objectivo inconfesso seja o de encorajar uma vida dedicada à leitura de manuais de instruções.

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