“A (não) tragédia da praia da Cresmina” podia ser o título de um inédito da Agatha Christie, mas é apenas o resumo de um caso que é a prova provada de que em Portugal o crime compensa. Tudo porque existe um círculo vicioso de interesses e sobretudo de desinteresses por aquilo que é nosso e que será dos nossos.

A história – que não conta com Poirot, mas tem mistério q.b. – começa assim: no passado 3 de junho, um casal estrangeiro estacionou a autocaravana no topo da falésia da Ponte da Galé, apesar da proibição assinalada no local. O objetivo seria, com certeza, passarem a noite num cenário com uma vista idílica e a custo zero.

Como não há qualquer vigilância na zona, toda esta experiência teria sido perfeitamente possível, não fosse chegar, por volta das 23h00, um convidado-surpresa: o azar. Por motivos desconhecidos, a viatura acabou por cair da arriba de cerca de 10 metros, destruindo parte da esplanada de um bar de praia.

Felizmente, o azar tinha levado consigo a sorte e este espaço estava encerrado desde as 20h00, não havendo registo de mortos ou de feridos graves. Só de feridos ligeiros: os ocupantes, os quais tiveram apenas algumas escoriações. Contudo, também para estes o desfecho podia ter sido o pior.

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Qual a razão da queda do veículo, como conseguiram eles saltar, que sanções vão ter, quem é o dono do bar e o que pensa ele sobre o assunto e quando/quem o vai indemnizar são algumas das muitas questões envoltas no tal mistério próprio dos livros noir. Sem respostas para enigmas, vamos então analisar factos.

Facto número um: poucos media de âmbito nacional reconheceram valor-notícia a esta carrinha “voadora”. Porquê? Porque ninguém morreu, porque não houve drama nem tragédia humana. Só mesmo a destruição da natureza e do negócio de alguém. Mas, quanto a isto, o ambiente que se dane, e proprietário que vá falar com as seguradoras, não é assim?

Facto número dois: Além de ser pouco noticiado, nenhum meio de comunicação partiu deste acontecimento para abordar um outro tema essencial: a total impunidade do não-cumprimento da legislação que proíbe pernoitar e aparcar autocaravanas em todos os locais que não estejam expressamente designados para o efeito (Decreto-Lei n.º 102-B/2020, em vigor desde o início de 2021).

Toda esta história dos turistas é um caso-limite, é certo. Porém, passar a noite neste tipo de “hotel” de múltiplas estrelas e de acesso 100% gratuito é opção diária de inúmeros adeptos do caravanismo/campismo selvagem um pouco por toda a nossa belíssima e semideserta costa portuguesa.

Esta prática é ilegal porque, além de outros fatores, resulta em comportamentos também eles selvagens: fauna e flora destruídas, ecossistemas devastados, pequenos incêndios (resultantes de fogueiras e de cigarros mal apagados) e lixo e detritos orgânicos deixados ao abandono.

Toda a gente sabe, toda a gente vê e toda a gente vai registando com fotos e com vídeos amadores as provas dos múltiplos crimes. Perante as evidências, por que razão ninguém atua? Porque simplesmente servimos interesses (e são muitos) e porque também não temos interesse (orgulho/respeito) em proteger o que é nosso.

Bem sei que com uma guerra e uma pandemia a decorrerem, o mundo tem como pano de fundo um cenário já por si trágico. No entanto, se estivesse uma pessoa naquela esplanada a contemplar o mar à noite e perdesse a vida por uma lei não cumprida, seguramente que “a tragédia da Praia da Cresmina” saltava de imediato para a agenda mediática, tornando-se no best-seller noir da silly season.