Ser professor já era difícil. Mas, agora, começa a ser angustiante. Depois de mais uma série de negociações, fica a ideia de que os professores são os eternos insatisfeitos que passaram a representar o papel de (pelo menos) uma das duas cabras de Esopo, dada a sua incapacidade para negociar.

Há anos e anos que todos nós sabemos que a carreira de professor não é valorizada. No entanto, o que estes mesmos professores reclamam, não é mais do que a decente e justa reposição daquilo que lhes é devido, dentro dessa mesma carreira desvalorizada (que já se convenceram ser a única a que têm direito). E isto porquê? Porque têm consciência de que, para mais do que isso, seria preciso haver solidariedade, compreensão, empatia e, até, a tão bendita “boa-fé”, tantas vezes invocada pelo senhor ministro, nestes últimos dias, em tom assaz grave e solene.

No entanto, ao invés da água que têm vindo a pedir, apenas vinagre lhes tem sido concedido. E tudo estaria bem, se aos professores coubesse o santo propósito messiânico. Mas, segundo consta, esse já foi cumprido. E não é justo pedir-lhes que carreguem as culpas do Governo e expiem os seus pecados, no calvário em que se tornou a sua vida docente.

A água a que os professores teriam direito seria, por exemplo, a contabilização dos anos que trabalharam. Não se trata de um luxo, trata-se sim de pouco mais de 6 anos e meio de obrigações cumpridas que o Governo não quer devolver. Apesar do que se tem dito por aí, em muitos dos programas de opinião, não é verdade que professores e as demais classes se encontrem nas mesmas condições. No próprio site do governo pode ser lido, numa notícia do ano passado, que “o Ministério da Saúde concluiu as rondas negociais com as estruturas sindicais com vista à definição do modelo de recuperação de pontos obtidos em sede de avaliação do desempenho e à progressão salarial dos enfermeiros […] dando cumprimento ao compromisso do Governo de valorização das carreiras do maior grupo profissional do Serviço Nacional de Saúde.” Todo este processo acabou por culminar – e bem – na publicação, em Diário da República, do Decreto-Lei nº 80-B/2022, de 28 de novembro.

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A água a que os professores teriam direito seria, por exemplo, a eliminação do sistema de quotas na admissão aos 5º e 7º escalões. Também isto não é um luxo, é apenas e só o reconhecimento do comprometimento destes profissionais com o seu trabalho e com as regras de progressão que lhes foram impostas – regras essas com as quais nem sequer estão de acordo, mas que também o Governo se tem recusado, até aqui, a alterar. Imagine-se o que seria se eles (aqui avaliados), no decorrer das suas funções de avaliadores, apenas pudessem dar uma percentagem das notas a que os seus alunos teriam direito. Com que moral poderiam os professores insistir para que aqueles estudassem se, ao atingirem o Muito Bom, apenas tivessem direito a um Suficiente, por já não haver mais Muito Bons disponíveis para dar? Ainda assim, ao que parece, os professores têm honrado o seu compromisso e não desistiram de “estudar”. Até aqui, o Governo foi sendo capaz de lhes atribuir mérito na recuperação das aprendizagens perdidas durante os dois anos de pandemia – mérito esse que todos nós também lhes reconhecemos. Agora, é o mesmo Governo que está a acusá-los de irresponsabilidade e inconsequência pelas aprendizagens perdidas durante estes dois meses de greve – inconsequência essa que, felizmente, apenas alguns de nós lhes atribuímos. E se há milhares alunos para os quais, e por culpa dos professores, a regularidade das aulas tem estado, desde há dois meses, comprometida, há também milhares de alunos que, por culpa do Governo, ainda esperam pela primeira aula do ano letivo, a algumas disciplinas.

A água a que os professores teriam direito seria, por exemplo, a desburocratização do seu trabalho. Também aqui não se trata de um luxo, nem de ter tempo para o lazer, mas sim de poderem ter tempo para os seus alunos: preparar as suas aulas, planear estratégias de ensino diversificadas, construir recursos apelativos – tudo coisas que até nós próprios sabemos serem fundamentais num ensino de qualidade. Só que, este mesmo Ministério da Educação que tem apelado ao retorno à normalidade – invocando o bem dos alunos e das aprendizagens – afinal, não está comprometido com o seu sucesso o tanto quanto bastaria, para que pudesse ser reduzida a quantidade absurda de procedimentos e relatórios a que os professores são obrigados a dar resposta. Ao invés disso, o Governo tem-se congratulado pelos resultados muito positivos das taxas de sucesso escolar, resultados esses perversamente alcançados, com a ajuda de procedimentos burocráticos que impelem os professores mais cansados a avaliar positivamente resultados inequivocamente negativos, e que aliciam os professores mais novos a irem pelo mesmo caminho, sob pena de terem que preencher ainda mais papelada, no caso de optarem por uma avaliação mais justa.

A água a que os professores teriam direito seria o reconhecimento de que um professor é professor, também porque estudou para isso. No aspeto da sua formação profissional, não lhes permite – nem a escola, nem o trabalho – ficar no banco. Não é por acaso que a instrução superior que precede a docência se passou a chamar “formação inicial”, fazendo emergir um novo conceito: o de “formação contínua”. Admite o termo (e as horas que os docentes passam em formações, ao longo do ano) que o processo de aprendizagem necessário para o bom exercício das suas funções deve ser, no mínimo, constante. Hoje, para ser professor, não basta o canudo dos tempos da faculdade. No entanto, os conceitos de “incompletude” e de “irrelevância” têm-se misturado de tal forma que a contratação de professores não habilitados deixou de representar, para o Governo, um risco para a qualidade do Ensino em Portugal, uma vez que a sua possibilidade já se encontra devidamente legislada e consequentemente promulgada. O que diríamos nós se a falta de médicos fosse colmatada com a colocação de biólogos, ou a falta de enfermeiros com a de massagistas?

A água a que os professores teriam direito seria, por exemplo, a alteração do diploma sobre a mobilidade por doença, a aprovação de um regime específico de aposentações, a unificação das regras de progressão na carreira entre o continente e as ilhas, a contagem do tempo de serviço dos educadores em creches, a atribuição de um subsídio de alojamento ou transporte para os professores deslocados, o abandono da intenção de criação de conselhos locais de diretores com competências no recrutamento de professores… E com que sede a têm pedido.

Mas vamos ao vinagre. As propostas que o senhor ministro apresentou vêm beneficiar, de uma forma geral, os professores contratados (e ainda bem que assim é). Veja-se o caso, por exemplo, dos 1095 dias, ou da introdução de dois escalões nos vencimentos destes professores, ou até mesmo do aumento dos QZP (que, afinal, podia já ter sido concretizado há muito tempo). Desta forma, o Ministério pretende tornar mais atrativas as condições para os professores contratados, ao mesmo tempo que encurta o tempo de espera a que esses mesmos estão sujeitos, antes de poderem passar a integrar os quadros. Quanto ao resto, fica mais ou menos tudo como estava. Por outras palavras, os benefícios oferecidos serão canalizados para um número muito menor de beneficiários (menos 10.500 professores, já a partir do próximo ano), os quais terão agora a vantagem de se poderem deparar muito mais rapidamente com as verdadeiras dificuldades e injustiças que a longa carreira lhes reserva. Com isto, o Governo pretende ainda desmobilizar as greves (dividindo a opinião dos professores, em particular, e dos cidadãos, em geral) e atrair novos professores que, no início imediato da sua atividade, passarão a ser tratados com uma desacostumada candura.

E se as greves não pararem, haverá sempre novas formas de se lhes retirar o sentido e o significado, promete o Governo. É que com uma maioria absoluta, as propostas deixam de o ser verdadeiramente e, a partir de Fevereiro, haverá serviços mínimos nas escolas, como acontece na saúde, nos bombeiros e na polícia. E a cada passo, temos mais dúvidas acerca disto: como pode a inatividade dos professores ser considerada um tão alto risco para a segurança da sociedade e, ao mesmo tempo, ser a sua atividade tão irrelevante que não seja necessário sequer ouvi-los? É que, se os protestos durante as negociações revelam falta de “boa-fé”, o que representará então partir para elas com tamanha indisponibilidade para negociar?

Por fim, e em jeito de pista para a resposta que deveríamos todos procurar dar a estas perguntas, importa apenas lembrar que, além dos professores, também outros profissionais não docentes se têm juntado a esta luta. As reivindicações destes passavam, a título de exemplo, pela alteração das regras de progressão na carreira dos assistentes operacionais – os quais recebem salários de 709€, independentemente de terem 10 ou 35 anos de serviço e que, de acordo com as regras em vigor, terão que trabalhar 120 anos, se quiserem atingir o topo da sua carreira. Para com estes, contudo, o espírito negocial do Ministério traduziu-se em nem sequer lhes dar a cheirar vinagre.