No país do Faz-de-Conta realizaram-se eleições. O resumo é que a AD é o grupo político com mais deputados, mas o PS terá apenas menos dois. No entanto, o conjunto AD+IL tem menos deputados que uma nova Geringonça, e o Chega, o grande vencedor das eleições, vai continuar a ser o elefante no meio da sala que todos tentam contornar sem êxito. No país do Faz-de-Conta, todos faziam de conta que o Chega não existia.

Só que, de repente, as fórmulas utilizadas para menosprezar a formação e os seus votantes deixaram de funcionar. Alguém disse, logo na noite eleitoral, que mais de um milhão de portugueses não podem ser fascistas. Eu diria que sim, que podem. Aqui há uns anos escrevi um texto em que defendia que agora somos todos fascistas, pelo menos nas políticas económicas, laborais e da protecção social e, desde esse ponto de vista, é muito mais fácil de perceber o fenómeno. A questão não é que o 1,1 milhões de votantes do Chega sejam ou não sejam fascistas. A questão é que não são nem mais nem menos fascistas que os votantes dos outros partidos. No país do Faz-de-Conta, todos faziam de conta que os eleitores do Chega eram diferentes.

Quando só tinha um deputado, o Partido de Ventura era “racista e fascista”. Quando conseguiu 12 passou a ser de “extrema direita” e agora que tem meia centena representa a “direita populista”. Quando tiver 100 será simplesmente “a direita”. Independentemente do nome, os 50 deputados do Chega dão-lhe o direito a ter uma palavra a dizer na governação do país. No país do Faz-de-Conta os outros partidos, em particular a AD, fingem ainda ser possível evitá-lo. Não é. Negar a André Ventura a importância dos seus votos, julgar que esses eleitores se podem recuperar atendendo às suas revindicações através de um governo sem o Chega ou, o que é pior, enterrar a cabeça na areia, continuando a governar da mesma forma que até aqui (quem sabe se pelo mesmo partido), apostando no esvaziamento da bolha de contestação, na esperança de que estas pessoas, muitas resgatadas à abstenção, voltem a ficar em casa nas próximas eleições, são estratégias que só vão confirmar aquilo que 1,1 milhões de pessoas julgam saber e que muitas mais intuem ser verdade: que existe uma dissonância cognitiva entre as supostas elites que governam o país e a realidade que grande parte da população suporta, e que em grande medida se deve às decisões políticas e às transferências de riqueza que essa elite impôs (e impõe) à população.

O grande debate da campanha eleitoral entre os líderes dos dois maiores partidos não foi sobre grandes opções ideológicas ou linhas políticas gerais. Foi um espavento onde um advogado e um economista tentavam convencer o eleitorado de que são a pessoa indicada para microgerir os problemas da saúde, da educação, das pensões. Como um insulto à inteligência, as promessas e os planos foram apresentados como se não tivessem custos para as pessoas. Acrescentando injúria a esse insulto, proclamaram que essas medidas serviriam para dinamizar uma economia que, no país do Faz-de-Conta, depende muito deles para prosperar. No fundo isto é assim porque grande parte do eleitorado acredita que esta é uma missão que um governo competente poderia lograr. Infelizmente essa é a herança fascista em que não só o milhão e cem mil que votou no Chega, mas população em geral, ainda acredita. E é por isso que, quando uma vez mais fracassar, o Chega vai obter ainda mais votos.

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Há que dizer que apesar de o intervencionismo estatal ser incompatível com a manutenção de uma sociedade complexa em que milhões de cidadãos podem prosperar através da divisão do trabalho e do conhecimento, existem diferenças. É nessa medida que Portugal consegue ter um desempenho medíocre mesmo quando comparado com países em situação semelhante. Simplificando, poder-se-ia dizer que o problema de base é a incapacidade de criar uma estrutura de produção de bens e serviços eficiente, flexível e que recompense satisfatoriamente o êxito no emprego dos factores produtivos (trabalho e capital). O problema arrasta-se há décadas e é em grande parte criado pela intervenção estatal. Não só através do empobrecimento que promove quando extrai riqueza ao processo produtivo e à população (Portugal é o quarto país com o maior esforço fiscal na Europa), como, e isto é geralmente ignorado, devido ao imenso poder discriminatório que tem para escolher os vencedores (Portugal é o país que recebeu o maior montante de fundos europeus de coesão e para o desenvolvimento regional per capita). Em suma, no país do Faz-de-Conta, fazemos de conta que o governo sabe o quê, como e onde produzir riqueza.

O resultado de décadas desta crença foi a criação inevitável de uma imensa rede clientelar e de tráfico de influências que é muito benéfica para aqueles que obram na órbita dos decretos do Diário da República. O Estado é a grande teta marsupial de onde se penduram centenas de milhares de pessoas, de todas as condições económicas e sociais. E foi contra isso que os eleitores do Chega (a Sul, no Interior e nas periferias urbanas e na emigração) e muitos eleitores da AD (a Norte, no Litoral e nos centros urbanos) votaram no passado dia 10. A AD tem neste momento um dilema que não o deveria ser. Ou reconhece que essa foi a principal motivação do seu eleitorado (confiando que os seus lemas de campanha – “Acreditar na Mudança” e “A Mudança está nas tuas Mãos” – não caíram em ouvidos moucos) e aceita governar com o Chega, com todas as vicissitudes que isso acarreta, ou escuda-se nas tais linhas vermelhas que deixarão de manifesto para muita gente, a começar pelos seus próprios eleitores, que a AD é parte do problema e não da solução.

Outra versão, mais cínica, mas não menos realista, é a que o PSD tem de escolher entre tomar o poder, que é o objectivo em si mesmo de qualquer partido político, ou respeitar a promessa que o seu líder fez de não negociar com o Chega, como se alguma vez algum político tivesse sido prisioneiro das suas próprias palavras. Não tendo uma bola de cristal, ouso afirmar que o governo com o Chega é a única opção realista para a AD em cima da mesa e que, se por um estranho acaso, não for a escolhida, ditará a curto prazo o desaparecimento do PSD. No país do Faz-de-Conta, fazemos de conta que um partido social-democrata e um partido socialista são dois partidos ideologicamente diferentes e, como tal, que ambos fazem falta.

É obvio que o Chega não tem um programa para resolver os problemas económicos, sociais ou culturais do país. Por isso é que involucrá-lo na governação é o primeiro passo para o obrigar a entrar em compromissos de governação dos quais dificilmente poderá sair recorrendo à demagogia. Porque enquanto estiver do lado de fora as elites podem acusá-los de populismo, mas eu pergunto: quem é mais populista? O Chega que exige que o Estado resolva os problemas da saúde e da educação, ou os próceres do regime que incrustaram na Constituição a ideia de que a saúde e a educação podem ser tendencialmente gratuitas?

Aqui há tempos escrevi que os eleitores do Chega não aspiram a nada recente, desejam um retorno ao grande consenso social do pós-guerra, quer dizer, à social-democracia que se forjou durante três décadas na Europa, em que a coisa pública era gerida essencialmente através do modelo económico e social fascista, temperada pela vontade popular expressa democraticamente, à qual Portugal só chegou quando o modelo já começava a ruir. Isto era assim, pensava eu, porque o eleitor típico do Chega seria uma pessoa de uma certa idade a quem o Estado do Bem-Estar em Portugal (mas também lá fora) não entregou aquilo que lhe tinha prometido – uma protecção social de qualidade desde o berço à tumba. Mas depois destas eleições parece-me claro que esse votante mais velho, afinal, está razoavelmente satisfeito com as migalhas que lhe caíram em sorte e tem medo de perder o pouco que ainda lhe resta, continuando a votar expressivamente no status quo, isto é, no PS. O eleitorado do Chega é, afinal, bastante mais jovem. Apesar disso revindica essencialmente essas mesmas coisas e sente-se igualmente ludibriado. Também por esse motivo o tempo corre a favor do Chega, que agradecerá continuar a ser marginalizado por aqueles que, cada vez mais, a população culpará pelos inevitáveis fracassos económicos, sociais e políticos que continuarão a ser infligidos aos portugueses. Ou, no país do Faz-de-Conta, vamos fazer de conta que acreditamos que desta vez é que vai ser?

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.