Em Rhinoceros (1959), peça teatral do dramaturgo Eugène Ionesco, dois amigos, Jean e Berenger, dialogam num café sobre a vida. Um, deprimido, vergado pelos fracassos, queixa-se de andar a beber demasiado, de ter perdido a ambição e não saber que rumo tomar. O outro, mais confiante e bem-sucedido, vai escutando e motivando o amigo para deixar os maus-hábitos e se focar num futuro que ainda não está perdido. De repente, algo surreal sucede: um enorme rinoceronte atravessa a rua, espalhando destruição e pânico. Mais tarde, circula pela cidade o rumor de que a população se está a transformar em rinoceronte. Talvez porque sofrem, porque custa viver, pensar, as pessoas tomam a consciente decisão de se metamorfosear naqueles destrutivos e irracionais bichos. No final da peça, Berenger, aquele que se lamuriava e não tinha esperança, que pedia auxílio ao amigo e procurava uma luz que apontasse para o sucesso, sem deixar de se afundar em depressões e conflitos interiores, fica sozinho como o único homem que optou por não se tornar rinoceronte. E por esse motivo se sente devastado e culpado, como se tivesse feito algo errado, como se escolher a via da individualidade num planeta em que já só restam rinocerontes fosse pecado supremo.
Ionesco viveu as guerras mundiais, o fascismo e o nazismo. As suas peças exploram situações aparentemente absurdas que têm relação com algo desolador: o sentido de viver num mundo estupidificado, o nojo de coexistir com quem aderiu a ideais violentos que fazem a apologia da barbárie. Rhinoceros é um documento importante para entender o valor da resistência em períodos em que as massas condenam quem não adere à nova moda ou ao novo ideal. Lemos esta obra e não evitamos pensar no presente, neste ridículo tempo presente que habitamos. Como devemos gerir a vida numa altura em que os nossos vizinhos e conhecidos abdicaram voluntariamente da racionalidade e, na sua nova condição de rinocerontes, marram contra as paredes, apostam na discriminação daquele que é diferente, defendem a expulsão de imigrantes só porque esses imigrantes não falam bem a nossa língua ou não têm a nossa cor? Quem nos salva de ditadores, de demagogos, de nós mesmos, pobres animais domesticados, ansiosos por obedecer a quem nos desobrigar de pensar?
Escrevem os historiadores que a história não se repete, que os políticos de hoje não são os do século passado, e ainda assim há razões para temer que, vagueando por estes irreversíveis dias, estejam rinocerontes, ou gente que prescindiu da inteligência em prol de uma causa maior: a estupidificação universal. Ao pensarmos em fenómenos contemporâneos como as ditas fake news, a disseminação de notícias falsas com o intuito de formatar mentes, de incitar ao ódio, de arruinar a credibilidade de adversários políticos e ideológicos, é preciso ter em conta esta ideia de estupidificação voluntária do cidadão – a transformação em rinoceronte. Essencial para a transformação da criatura pensante em besta é uma certa fé, uma má-fé, que impede que reconheçamos coisas essenciais. Sabemos à partida que não existe uma rede de marxistas querendo infectar os estudantes brasileiros com o socialismo, e não ignoramos a imbecilidade de afirmar que Barack Obama não nasceu na América ou que é um árabe que secretamente tenta destruir o seu país por dentro. Como percebemos pela leitura de Ionesco, a decisão de virar rinoceronte é voluntária. Isto quer dizer que não há nenhuma máquina de propaganda que nos impeça de examinar os fenómenos e sentir dentro de nós próprios que a ridícula semente informativa que nos é imposta como verdade é, na realidade, um convite a tornarmo-nos idiotas. Não corremos o risco de repetir a história, problema maior é acordar rinoceronte, partilhar com o amigo e a comunidade uma má-fé destruidora que não vislumbra mal na mentira ou no crime. É saber que as fake news são falsas e, mesmo assim, partilhá-las e cobrirmo-nos de cobardia quando outros juram que a salvação humana reside na perseguição a minorias e na destruição por via da bala. Absurdo, dizem do teatro de Ionesco. Absurdo avistar um animal exótico cruzando a avenida. Que dizer deste nosso angustiante quotidiano?
Department of Romance Studies, University of North Carolina at Chapel Hill