Para azar do ‘museu Salazar’, Portugal é um dos poucos países europeus governado por uma ‘geringonça’, de que fazem parte dois partidos marxistas: o PCP e o Bloco de Esquerda. Foi o primeiro que propôs, no passado dia 11, um voto contra a “criação de um ‘museu’ dedicado à memória do ditador Oliveira Salazar em Santa Comba Dão. Independentemente da sua designação, considerando essa criação uma afronta à democracia, aos valores democráticos consagrados na Constituição da República e uma ofensa à memória das vítimas da ditadura”. A moção foi aprovada com os votos da ‘geringonça’ – PCP, BE e PS – e a abstenção do PSD e do CDS.
Só faz sentido um museu se houver um conjunto de bens a conservar. Por isso, a primeira questão a colocar é: António de Oliveira Salazar tinha bens pessoais que seja do interesse nacional preservar? Não consta. Como escreveu António Barreto, é sabida “a ausência de objectos interessantes. A maior parte do acervo do ditador ficou nos arquivos da Presidência do Conselho de Ministros (…). Tal documentação, de grande valor, habita hoje, e muito bem, a Torre do Tombo” (Público, 1-9-2019). Ora, a resposta negativa a esta questão faz irrelevante a pergunta se Salazar merece, ou não, um museu.
Como aqui já foi recordado por Helena Matos (O lugar do morto, 15-9-19), se alguma ideia está ligada à memória de Salazar é, precisamente, a da sua proverbial pobreza, que os seus mais acérrimos devotos cultivam, enquanto os seus inimigos e detractores apelidam de provinciana tacanhice. Para a história ficou a caricatura do todo-poderoso presidente do conselho, recluído na sua residência oficial, com uma manta sobre os joelhos e um par de botas. Ora, sem ofensa para a sua memória, ou para a indústria do calçado nacional, isto é poucochinho para um museu.
Quere-se, com isto, dizer que Salazar não teve importância na história recente de Portugal?! Claro que não, pois todos, também os que mais o odeiam, reconhecem que foi uma figura marcante do século XX português. Com certeza que se justifica o estudo do seu pensamento e acção política, sobretudo por quem, pondo de lado as paixões que o seu nome ainda suscita, seja capaz de fazer uma análise objectiva da sua governação.
Mas, uma entidade evocativa do ditador, na sua terra natal, não se converterá numa sua homenagem, ou até num incentivo ao culto da sua personalidade e ideário político?! O Marquês de Pombal não foi menos déspota e, não obstante, a primeira república, supostamente democrática, erigiu-lhe o maior monumento da capital. A edificação da estátua teve, como presidente da comissão executiva, o então grão-mestre da maçonaria, Sebastião de Magalhães Lima, o que explica que se cite, num lateral do pedestal, como principal “reforma político-social” de Pombal, “a expulsão dos jesuítas”, que a primeira república repetiu. Curiosamente, a estátua foi erigida onde termina a Avenida da Liberdade e já se divisa, não muito longe, a penitenciária de Lisboa …
Se a primeira república levantou um tão grandioso monumento a um ditador, primeiro-ministro de um monarca absoluto, sem que um tal acontecimento tenha ofendido o seu ideário, a terceira república também poderia, pelo menos em tese, tolerar a existência de uma instituição – não laudatória, mas histórica – relativa a um outro ditador, este por sinal da segunda república, sem que a sua criação constitua “uma afronta à democracia, aos valores democráticos consagrados na Constituição da República e uma ofensa à memória das vítimas da ditadura”.
Irene Flunser Pimentel (Expresso, 24-8-2019), apesar de ser, em princípio, contra um centro interpretativo do Estado Novo em Santa Comba Dão, não exclui a hipótese de um museu da ditadura, desde que apresente “a ideologia iliberal [sic], anticomunista e corporativista de Salazar” e insira “o seu pensamento e a sua ação no contexto ditatorial europeu dos anos 20 a 40 do século XX”, ou seja – digo eu – das ditaduras fascista, nacional-socialista e comunista. “Também não podem estar ausentes o retrato da sociedade portuguesa, elitista e hierarquizada, com ausência de mobilidade social e profundas desigualdades”. Aí deve ser desmistificada “a política financeira de Salazar”, e não se deve deixar de “mostrar a miséria dos trabalhadores, camponeses e assalariados rurais”, nem a “emigração clandestina”, nem a guerra colonial, nem “a sua política educativa, social e de saúde”, nem de “referir os números do analfabetismo e da mortalidade infantil”. Segundo esta historiadora, também não se podem esquecer “as suas várias instituições, da repressiva à censória, nem a corrupção e os escândalos abafados como o dos Ballet Rose”. Portanto, museu sim, mas com todas estas referências … ou seja, mais do que um museu, propõe-se uma autêntica enciclopédia!
O Estado Novo não pode deixar de ser referido na história de Portugal, como também o fascismo, o nacional-socialismo e o comunismo não podem ser apagados da história recente da Itália, da Alemanha e da Rússia, respectivamente. Auschwitz não foi destruído, porque é importante preservar a sua memória. A principal arma contra a ignorância e o fanatismo totalitário não é a ocultação da verdade, mas o conhecimento.
A historiografia marxista manipula a verdade em função das suas conveniências ideológicas: são conhecidas as diversas versões de uma famosa fotografia de Lenine, discursando num comício, em que os seus correligionários, à medida em que caíam em desgraça, eram apagados… Para a Igreja, pelo contrário, a verdade, que é Cristo, deve prevalecer sempre e, por isso, foi particularmente grave o encobrimento dos casos de pedofilia. Mas esta atitude foi apenas uma deplorável excepção à regra vivida desde os primórdios do Cristianismo: os primeiros fiéis não omitiram que o traidor, Judas Iscariotes, era um dos doze; nem que Pedro, o primeiro Papa, negou três vezes o Mestre; nem que Cristo foi crucificado entre dois ladrões; nem que o apóstolo Tomé não acreditou, de início, na ressurreição de Jesus; nem que Maria Madalena estava possessa de sete demónios; nem que S. Paulo colaborou no assassinato de Santo Estêvão…
A Igreja, como Cristo, existe para dar testemunho da verdade (Jo 18, 37), porque só a verdade liberta (Jo 8, 32). A ditadura, seja fascista ou comunista, não se vence com a ignorância, mas com a ciência. Como escreveu Manuel Carvalho, no editorial do Público de 12-9-2019, “numa democracia, o combate aos resquícios de uma ditadura como a do salazarismo não se faz com condenações proibicionistas; faz-se com o conhecimento da História. É também para isso que servem os museus”.