A invasão dos bárbaros

Homens barbudos e sisudos com Kalashs ao ombro entram pelos salões do palácio presidencial de Cabul e pelos nossos écrãs adentro, ajustando os olhos ao chão atapetado, aos cadeirões doirados e aos requebros dos lustres. Os chefes sentam-se à volta da secretária como quem vai falar ao mundo mas ainda estranha o cenário; os outros perfilam-se atrás, inquietos e alerta. Há imberbes (e se são imberbes é porque Alá ainda não lhes deu os pelos da maturidade) a percorrerem o luxo novo dos salões como crianças na Disneylândia.

O imaginário volta-se aqui, irremediavelmente, para a queda de civilizações sofisticadas às mãos dos bárbaros – a entrada dos guerreiros de Alexandre nos palácios de Dario – e para a sorte dos vencidos de todas as invasões. Ou para a tragédia das vencidas, como as troianas cativas, no Teatro de Eurípides.

Os impérios, todos os impérios, parecem estar perpetuamente à espera de bárbaros que os conquistem – bárbaros que nem sempre chegam quando se espera. Porque quando Calígulas e Neros, bem diferentes dos antigos magistrados republicanos na decadência dos costumes e no amolecimento e corrupção do povo com pão e circo, podiam fazer esperar o fim do império romano, o império resistiu e até cresceu no século II, com os Antoninos, vindos das províncias. E continuou à espera dos bárbaros, até que (na controversa explicação de Nietzsche) o cristianismo, com as suas doutrinas de mansidão, de perdão e de amor ao próximo e até ao inimigo, debilitasse por dentro a sua força conquistadora. No romance de J. M. Coetzee, À Espera dos Bárbaros, os rudes estrangeiros também tardam a vir, e no de Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros, um oficial, Giovanni Drogo, parte para a fortaleza de Bastiani, frente ao deserto dos tártaros, onde espera uma invasão que nunca vê chegar.

Mas se a invasão dos bárbaros é um lugar selecto ocidental, um tema dos “civilizados cristãos”, vezes houve em que os bárbaros fomos “nós” – como em 1860, quando os exércitos anglo-franceses saquearam e queimaram o Palácio de Verão, em Pequim.

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Desta vez, digamos que os bárbaros são os talibãs e os civilizados os americanos, que mandavam num governo que lá tinham posto e que, sem eles, caiu; e que a invasão foi tudo menos inesperada, chegando mal ruiu a frágil “fortaleza americana” e se apressou a atabalhoada debandada das suas sentinelas.

Assim, 20 anos e muitos milhões de dólares e de investimento humano, político e militar depois do ataque jihadista aos Estados Unidos, repetem-se imagens de há quase meio século, quando da queda de Saigão.

Em resposta a uma astuciosa investida que os marcou profundamente, os americanos derrubaram o governo talibã que acolhia os terroristas que a planearam e executaram. Para tal, impulsionaram uma coligação de senhores da guerra do Norte, de etnias não-pachtun e, em pouco tempo, Cabul caía.

Uma lógica realista mandaria que, com o apoio desses mesmo senhores da guerra, se procurassem e eliminassem os responsáveis pelo ataque de 11 de Setembro e que as tropas americanas depois se retirassem. Mas não. Faltava a implantação da democracia.

Quem lesse a História e as histórias do Afeganistão encontraria uma terra belíssima, de gente dura, brutal, antiga, com códigos feudais de lealdade e negócio, mas longe de ter condições para que ali se instalasse uma democracia representativa e pluralista, regime para o qual eram precisas duas coisas: Estado (de preferência um Estado nacional) e sociedade civil. Nada disso existia no Afeganistão. Mas se não existia, teria de passar a existir.

Cemitério de impérios

Muito depois do império britânico, chegou ao Afeganistão o império soviético para socorrer o Partido Comunista, que tomara o poder em 1978 e procedera a impopulares “reformas modernizadoras”. E os soviéticos ficaram até que os expulsassem os mujahedin, armados por ingleses e americanos, através da Agência de Inteligência e Segurança do Paquistão (ISI), com mísseis Stinger e outros modernos brinquedos fatais.

Depois da queda do império soviético chegou então o americano para, com fogo e estrondo, vingar as Torres de Nova Iorque. Bin Laden escapou-lhes durante anos, escondido nas cavernas daquele recanto da Ásia Central. Mas, uma vez descoberto e liquidado o chefe jiadista, Washington quis continuar a transladação das instituições da América para um país da Ásia Central que não passava de uma colagem forçada de etnias, de tribos, de senhores da guerra, com valores, códigos de ética e costumes que pouco tinham que ver com os ocidentais.

Foi Bush que o começou a fazer mas Obama retomou a missão, usando e abusando de drones que chegaram a matar por engano famílias inteiras de inocentes, inflamando o descontentamento local.

Trump reafirmou a presença americana no Afeganistão mas começou conversações para uma retirada negociada com os insurgentes em Doha: a América e o mundo estavam fartos daquelas guerras; as guerras a que dois pessimistas ocidentais, Edward Gibbon e George F. Kennan, tinham chamado “guerras longínquas”, demoradas, ruinosas, condenadas à derrota. Por isso Trump começara as negociações. Negociações que Biden continuou e agora deu por concluídas.

O que está em causa perante a tragédia de Cabul não é o princípio da saída; é a conclusão, o tempo e o modo da saída, a total confusão em que aconteceu e está a acontecer a debandada. O que é grave e nos pode e deve escandalizar é o tempo do anúncio da saída das tropas, o modo impensado e patético do abandono de Bagram, há um mês, a incapacidade de preparar e parar o avanço das colunas dos talibãs para Cabul, por intimidação ou acção, permitindo uma evacuação ordenada dos americanos, dos estrangeiros e dos colaboradores.

A fragilidade do Exército afegão, tribalizado, dividido por linhas clânicas e cheio de soldados de papel (porque existiam só no papel) terá com certeza ajudado, mas não restam dúvidas de que a tragédia afegã que agora vivemos vem sobretudo do modo catastrófico da retirada americana. Daí a crescente impopularidade de Biden nos Estados Unidos e a censura dos aliados, expressa por Boris Johnson em Westminster, numa moção sem precedentes.

Senhores de antes e de depois dos impérios

Entretanto, e ainda que os senhores da guerra afegãos que pareciam decididos a combater com as suas milícias a ofensiva dos talibãs (como Atta Mohamed Noor ou Abdul Rashid Dostum, que no passado foram decisivos para os derrubar) tenham fugido para o Uzebequistão, ainda há ilhas de resistência. Uma delas, entroncando numa tradição de vinte anos, está no vale do Panshir, onde Ahmad Shah Massoud, resistente ao domínio dos fundamentalistas, foi assassinado nas vésperas do 11 de Setembro. Foi aí que, na passada quarta-feira, 18 de Agosto, o seu filho, Ahmad Massoud, proclamou, com o vice-presidente Amrullah Saleh, a sua vontade de resistir ao governo de Cabul.

Assim, e depois da retirada dos americanos, dos estrangeiros e dos afegãos mais comprometidos com os aliados que conseguirem sair, esperam-se tempos duros e confusos de guerra civil, tempos de ajuste de contas, de luta entre facções e clãs, de exílio, de fuga. Tempos que existiram antes da chegada dos impérios e que vão subsistir para além deles.

À procura do “bom talibã”

Ficamos perante as terríveis imagens que nos chegam. Terríveis pelas realidades que mostram e pelas que não mostram. No Afeganistão, agora abandonado pelo “imperialismo americano”, espera-se, realisticamente, o regresso à Sharia e aos seus códigos e práticas, especialmente duros para as mulheres, a quem foram dadas esperanças. E de pouco servirá o voluntarismo de alguns comentadores e líderes políticos, afanosamente à procura do “bom talibã” – do talibã pragmático, inclusivo e aberto ao diálogo –, lembrando em versão pouco lúcida o irrealismo lúcido de Eça de Queirós que, por pouco saber do que se passava “dentro do Islão”, sempre admitia a hipótese de estar erradamente a atribuir aos “fortes corações de Meca e do deserto os cepticismos literários de Pall-Mall e do Boulevard de la Madeleine”.

A lição final deste fracasso é funda e cruel: os impérios que duraram – como o romano e o inglês – tiveram como regra, dentro de um princípio geral de obediência ao poder central e de manutenção da paz (imperium era também e sobretudo um espaço de paz), o pragmático respeito pelas crenças, pelos costumes e pelas instituições dos povos locais. O império ideológico e invisível norte-americano, durante a Guerra Fria, teve também o realismo e o pragmatismo de, na coligação anti-soviética, saber conviver com regimes, costumes e religiões diferentes.

Mas com o fim da Guerra Fria, e por impulso da húbris ideológica neo-conservadora, Washington quis impor o modelo americano por toda a parte. E quase sempre de forma voluntarista e irrealista.

Em Return of the Strong Gods: Nationalism, Populism, and the Future of the West, R.R. Reno avança com uma explicação: traumatizadas por duas guerras que atribuíram aos “excessos de nacionalismo”, e sobretudo àquilo em que o hitlerismo transformou o nacionalismo alemão, as elites político-intelectuais do Ocidente quiseram eliminar da normalidade todas as “lealdades fortes” e agregadoras do passado – a religião, a nação, a moral tradicional – substituindo-as por um pensamento único, baseado no individualismo extremo, na mão invisível do mercado, no relativismo moral. E, sempre que esses “deuses fortes” emergiam noutros povos ou territórios, tentaram vencê-los pelo progresso e pela técnica, numa mistura de direitos humanos, napalm e drones.

20 anos depois

Que ao cumprirem-se 20 anos sobre o 11 de Setembro os que então albergaram e protegeram os terroristas estejam outra vez no poder em Cabul, não é uma constatação agradável para o “mundo livre”, que se debate agora com outros fundamentalismos domésticos.

Com a saída do protector império longínquo e com a incerteza interna, os Estados vizinhos do Afeganistão vão preencher o vazio: o Paquistão, que nunca deixou de estar presente no jogo, muitas vezes com ambiguidade, e que tem de se proteger do jiadismo; a Rússia, vizinha das repúblicas da Ásia central de população muçulmana que agora são vizinhas dos fundamentalistas; a China que, sem deixar de se congratular com a humilhação do poder americano, tem também de se acautelar, não vão os fundamentalistas islâmicos de Cabul querer ajudar os seus irmãos uighur.

Vinte anos depois, o legado do imperialismo cultural americano acaba por ser terrível para aqueles que tentaram e acreditaram na mudança: para as mulheres que começaram a estudar e a trabalhar; para as minorias sexuais perseguidas, que ainda viram o fugaz esvoaçar da bandeira do arco-íris na embaixada americana em Cabul, para os que colaboraram com Washington e, na tremenda confusão da saída, foram apanhados de surpresa. Ficam agora todos à mercê do pragmatismo, da vontade de inclusão e da capacidade de diálogo dos talibãs, em que os nossos optimistas parecem acreditar – por convicção ou para sossegarem a consciência.