As desigualdades sociais são, talvez, o maior flagelo nacional. Esta afirmação pungente pode gerar nos espíritos mais atentos concordância. No entanto, parece haver uma certa resignação nacional com este triste fado. Porque aquilo que verdadeiramente marca a agenda mediática é a questão identitária de minorias, que merecem toda a atenção, mas que não podem desmerecer causas maiores. O leitor dirá que as questões de discriminação de minorias agudizam as desigualdades socias. Sem dúvida, que sim. O que não pode acontecer é serem o início e o fim deste debate.
O liberalismo e a igualdade como princípio basilar do novo sistema de pensamento puseram cobro a uma sociedade altamente estratificada em que o nascimento sentenciava a classe social a que cada um pertencia. Muito se fez de lá para cá. A escola pública ganhou destaque na promoção da mobilidade social. A universalização do acesso ao ensino, a partir dos anos 70 do séc. passado permitiu que muitos filhos quebrassem ciclos de pobreza perpetuados ao longo de gerações e gerações. A emergência da classe média corou o sucesso dos regimes demoliberais.
Apesar de tudo isto, Portugal continua a ser apontado como um dos mais desiguais da UE a 27. A média do coeficiente de Gini (mede a desigualdade na distribuição de rendimentos) na UE é de 30,1 e Portugal está nos 32,1 (2018). Supõe-se que a crise pandémica da Covid-19 irá agravar o fosso entre ricos e pobres. O estado social numa lógica de atuação meramente assistencialista resgatou uma população em risco de pobreza que em vez dos atuais 17,2%, ascenderia a uns fantasmagóricos 43%! O que num contexto de elevada mobilidade social poderia ser visto como um estado transitório, em Portugal é uma verdadeira sentença.
A escola pública tem cumprindo o seu papel na promoção da mobilidade social, mas falha quando permite bolsas de diferenciação social com base na origem social da família. Desde logo, porque o seu papel se esvai no acesso universal à educação, fazendo vista grossa ao insucesso escolar e ao consequente abandono. E depois, depois temos os rankings… são, sem dúvida, uma forma de premiar o esforço e mérito de toda a comunidade (que ocupa lugares cimeiros), mas são também a expressão da indiferença às condições de partida de alunos de contextos desfavorecidos, que só a frequência escolar já é, em si, uma grande conquista. O estigma da origem familiar começa aqui. A escola, ainda hoje, continua a perguntar pela escolaridade e profissão dos pais dos alunos. Que sentido faz isto se não for numa lógica de diferenciação social? A escola deve afirmar-se como um espaço de inclusão mesmo para aquela discriminação social fortuita que sempre esteve presente no nosso quotidiano e que desvalorizámos.
Afinal de contas, por cá a pobreza não é vergonha, mas que devia envergonhar-nos a todos, lá isso devia. Esta pobreza é especialmente implacável com os mais vulneráveis: idosos e jovens. 18,5% dos jovens com menos de 18 anos estão em risco de pobreza. Significa que o seu orçamento familiar conta apenas com 501 euros (valores de 2018). Deste parco orçamento já fazem parte as transferências socias do estado. Que futuro lhes é reservado? A reprodução da mesma pobreza que os seus pais e provavelmente os seus avós experimentaram. Ou talvez a esperança de que volvidas cinco (!) gerações possam almejar fazer parte da classe média, ou que vier a restar dela. Têm ainda uma alternativa: a emigração. Não foi sempre assim? Tudo isto é triste mas na verdade tudo isto é fado.
Se as desigualdades sociais são o elefante na sala, a estagnação económica é o verdadeiro nó górdio. No final do séc. XX o país encontrava-se em convergência com os seus parceiros europeus, de lá para cá a divergência do PIB per capita passou de 15% para uns preocupantes 23% (2017)! O modelo de desenvolvimento económico assenta com pés de barro em setores de baixa intensidade tecnológica e com manifesto fraco potencial de criação de valor, por exemplo a restauração. Obviamente, há exceções como a indústria do calçado que conseguiu posicionar-se num segmento de mercado que valoriza a qualidade, depois de um processo de conversão tecnológica.
Com este modelo e um baixo stock de capital (50% da UE15) naturalmente a divergência de produtividade em Portugal se acentuou neste século, cifrando-se, em 2018, nos 34% face à média europeia. Isto não explica tudo, mas ajuda a compreender as razões para um trabalhador português apenas produzir 50% daquilo que produz um alemão. A solução não passa pelo consumo interno, esta opção apenas acentuará desequilíbrios estruturais nas balanças de pagamentos e comercial, com natural desvantagem para o país. A tónica do desenvolvimento deverá recair sobre a produção de bens transacionáveis e na consequente internacionalização. Assim, será possível agregar valor e simultaneamente gerar empregos qualificados capazes de absorver a massa crítica de uma geração que se vê enredada nas malhas da precariedade. As eleições que se avizinham são uma oportunidade única para que seja retomado este debate e que o país, de uma vez por todas, escolha o caminho do progresso económico, mas também social.
A incapacidade deste regime dar resposta às necessidades de uma franja considerável de marginalizados tem contribuído para o recrudescimento de movimentos populistas e demagógicos que cavalgam a onda da desesperança. O Chega mais do que uma inevitabilidade é um sintoma. Só um regime demoliberal poderá devolver, novamente, a esperança aos excluídos. E é chegado o momento.