A 4, 11 e 18 de Dezembro vou falar aqui na Academia do Observador sobre “Quem foi Salazar?”; não para o defender, mas para olhar para a época (cá dentro e lá fora), e para a pessoa na época, longe das diabolizações – ou das beatificações – do costume.
Como alguns terão presente, já “defendi” Salazar, ou seja, já fui seu “advogado de defesa” num concurso que a RPT realizou entre Outubro de 2006 e Março de 2007 e que foi toda uma novela.
Os Grandes Portugueses era a edição nacional de um modelo criado pela BBC (The Greatest Britons of All Times) e exportado para o resto do mundo. A partir de uma lista de 100 personalidades, históricas e actuais, o público escolhia aquela que considerava “the greatest”. No Reino Unido ganhara Churchill, na Alemanha, Adenauer, nos Estados Unidos, Ronald Reagan, na África do Sul, Nelson Mandela. Aqui ganhou Salazar.
Salazar começou por não constar da “lista de sugestões” apresentada “aos portugueses” pela direcção do programa – lista que incluía, por exemplo, Álvaro Cunhal, Otelo Saraiva de Carvalho e António Variações –, sendo depois acrescentado à pressa, para não alimentar a inesperada polémica que a sua exclusão logo gerou. Das 100 personalidades iniciais chegava-se, por votação do público, a 10, e para cada uma dessas 10 a organização escolhia um advogado. Como, suponho, não havia muito quem quisesse ficar com Salazar e a organização do concurso me contactou, avancei.
Quando chegaram os resultados finais com as escolhas “dos portugueses” e António de Oliveira Salazar foi dado como vencedor com 41% dos votos, a surpresa e o luto invadiram o estúdio e o incómodo foi confrangedor. A sala onde havia todo um banquete preparado para festejar os 50 anos da RTP, que coincidiam com o fim do programa, foi fechada, e os croquetes, os rissóis, as empadas, as bebidas por lá ficaram ao abandono. Mesmo tratando-se de um concurso, como fora possível? Se o candidato não era sequer listável, quanto mais elegível, como fora possível?
Apesar de se tratar de um simples concurso, foi um primeiro embate dos media e de algumas forças vivas domésticas com “um outro país” que ousava escolher o inescolhível.
Good mourning again
The Spectator – que teve, quanto às últimas eleições americanas, a prudência que outras publicações do Reino Unido, como o Financial Times ou The Economist, abandonaram – pôde escrever em editorial na sua primeira edição pós-eleições, depois de um ano de derrotas para os governos e partidos no poder: “For Democrats it is mourning again in America”.
Este “novo luto” (mourning), continuava o Spectator, era a consequência de uma campanha eleitoral ou de um acompanhamento da campanha eleitoral baseado numa série de falsas evidências; e sobretudo “na loucura de querer impor aos eleitores aquilo que deviam pensar”.
A perda de contacto com a realidade, a abstracção dos interesses reais das pessoas a troco de uma versão mítica da verdade de elites que acham que pensam bem e conhecem melhor que os próprios os interesses de leitores, espectadores e eleitores, ou até que são donos de certas “minorias” e podem com isso condicionar as maiorias, é o que tem caracterizado o pensamento da Esquerda e de muito Centro na Euro-América. Ninguém gosta de ser tutelado. Ninguém gosta que lhe seja retirado da lista determinado candidato, literalmente ou por diabolização sistemática. O “povo” tem dessas coisas.
As coordenadas culturais e políticas deste pensamento estavam já estabelecidas como doutrina dominante desde o fim da Guerra Fria e da formulação do globalismo liberal-democrático por Fukuyama e outros. Mas foi a crise de 2008 que agudizou a distância entre os modernos optimates e o populo.
Maquiavel, o fundador da Ciência Política moderna, entendeu bem do que se tratava; não no Príncipe, mas nas suas obras maiores, escritas no exílio interno de San Casciano, onde defendeu os valores da Republica Romana – a Pátria e a Liberdade.
São estes valores, nas suas versões modernas, o valor da Liberdade da Nação e na Nação, que os americanos e os europeus estão a redescobrir pelas consequências da sua ausência nas suas vidas. Mas como os grandes media e algumas elites continuam aparentemente intocados pelos sucessivos embates com esta e outras realidades, o mais certo é que continuem a saltar de surpresa em surpresa e de luto em luto.
Salazar e o futuro
Salazar, que desconfiava da democracia partidária e do voto popular e que era avesso a arraiais e folclores, até ao folclore do fascismo, ele que das poucas coisas que previu foi a inevitabilidade da mudança de nome da Ponte Salazar num futuro não muito longínquo, também havia de ficar surpreendido com a sua própria vitória num concurso popular, depois da revolução e de anos de intensa retórica anti-fascista. O regresso da trilogia do Estado Novo – Deus, Pátria e Família – também o intrigaria, sobretudo pelas novas roupagens que agora vestia. E o seu triunfo na América, país de que não gostava muito e que por isso fazia de conta que não percebia, também. Tanto mais pela mão de um político como Donald Trump, que, além da habitual suspeita, lhe causaria provavelmente uma certa perplexidade.