Abril, na iminência do teu quinquagésimo aniversário, pressuponho que não te apeteça  sair à rua para celebrar, eufórico e prazerosamente, com um país que tarda em honrar os  valores que outrora fizeste questão de revelar e (fazer) acreditar.

A verdade é que, para as pessoas da minha idade, Abril é tão somente a recordação  daqueles que emotivamente nos lembram as ferozes e audazes batalhas que travaram em  nome de todo um país, que precisava urgentemente de escapar da miséria e da indigência. Talvez esse seja um grande problema. Ver e escutar Abril, pela perspetiva de um outro  alguém, pode fazer com que, irrefletidamente, e sem discernimento para avaliar as suas  desastrosas consequências, possamos facilmente negligenciar um passado de luta heroico  que nos permitiu emergir já agraciados por um paraíso herdado. Somos herdeiros, mesmo  que sem muito esforço pessoal, de tudo aquilo que hoje vulgarizamos e assumimos como  adquirido: o acesso, independente da condição económica e social, a um Serviço Nacional  de Saúde concebido para concretizar o direito à proteção da saúde; uma Educação abrangente e capaz de derrubar as elevadas taxas de analfabetismo sentidas antes da  revolução; a justiça emancipada do poder político; entre tantos outros direitos, liberdades  e garantias que a nossa lei fundamental, uma das mais progressistas da Europa, consegue  materializar. De facto, a evolução é de tal ordem avassaladora e incontestável que, desprezar as inúmeras conquistas que abril semeou é ato de ingratidão dos que querem  enturvar os teus desígnios mais puros; vivem alienados da realidade, mas esses não farão  parte da tua festa.

Mas porque anda então, o povo, de forma uníssona, a clamar pela realização dos ideais  de abril? Qual o motivo para tamanha insatisfação dos destemidos capitães de Abril em  relação à trajetória do país?

Sabes, Abril, sinto que não temos sido justos para com a tua tamanha generosidade. Tu, que contemplaste o nascimento de um país do ventre de uma chaimite, assistes agora,  acredito que com profunda angústia, ao desmoronar de pilares fundamentais que  sustentam uma vida digna em democracia.

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As mulheres, incansáveis lutadoras a quem tu deste vida, continuam a ter de resistir  inabalavelmente a uma sociedade que as persegue, discrimina e oprime em função do seu  género. Elas, mesmo inquebráveis, continuam a ter de ouvir relatos aterrorizadores de  conhecidas e amigas que são vítimas dos mais horrendos abusos (sim, a violência  doméstica continua a maltratar e a matar mulheres todos os dias).

Os jovens, por quem transformaste as espingardas em livros para que aprendessem a ler,  não conseguem, ao dia de hoje, vislumbrar um futuro no seu próprio país, sendo forçados  a procurar oportunidades em terras que os valorizem (sim, um em cada três jovens  nascidos em Portugal vivem fora do seu país).

A habitação, que tu prometeste adequadamente para todos os cidadãos, é hoje uma mera  miragem aos olhos da população, que diariamente é confrontada com um cenário  repugnante e que a obriga a viver em condições indignas. Atualmente, a casa portuguesa,  é, com toda a certeza, um lugar onde vivem pessoas desesperadas que são, lamentavelmente, obrigadas a fazer esforços sobre-humanos para conseguirem pagar rendas, manifestamente inconcebíveis, num país onde a casa já não é um direito acessível.

A imigração, que tão bem nos deste a conhecer, que para uns é tábua de salvação e para  outros desprezível, tornou-se hoje um tema fraturante na nossa atualidade política.  Acredito que observas a defesa insensível e desumana dos movimentos de anti-imigração  com o desconforto de quem, como todos nós, cresceu a esperar pelas épocas festivas para  receber os familiares emigrados. De quem, como todos nós, sabe o que é chorar de  saudade quando vemos um amigo partir em busca de condições melhores. De quem, como  todos nós, sabe a coragem imensa que caracteriza um imigrante. Para ti, que cresceste a  escutar que “em terras, em todas as fronteiras, seja bem-vindo quem vier por bem”, deve  ser devastador sentir que não recebemos, com a hospitalidade e amabilidade merecidas,  quem escolhe convictamente o nosso país para enfrentar a vida.

A política, que tu proclamaste como um instrumento de combate notável e honesto para  colmatar as desigualdades e injustiças sociais, perde a sua credibilidade quando assume  sem qualquer tipo de escrúpulos a sua relação promíscua com a corrupção, com a  desonestidade e com a mediocridade. Hoje, o povo, desconsolado, descredibiliza aquela que deveria ser a sua maior arma de defesa, enquanto vê partidos desprovidos de valores, e que pretendem orgulhosamente ignorar-te, ganharem espaço na esfera política,  chegando mesmo a liderar as sondagens entre os mais jovens. Talvez, a criança, hoje  jovem, que cresceu inocentemente a cantar que quando for grande não irá combater, tenha de perceber urgentemente que “se esse poder um dia o quiser roubar alguém, não fica na  burguesia, volta à barriga da mãe. Volta à barriga da terra que em boa hora o pariu, agora  ninguém mais cerra as portas que Abril abriu”.

Os tempos mudam, as vontades naturalmente também. Contudo, hoje, continuamos, todos aqueles que almejam o progresso e a evolução, a querer que tu continues a ser a bússola  orientadora que, a cada passo dado, a cada triunfo celebrado, está lá, em viva memória,  para relembrar, na mais desafiante das decisões, que o povo é, de facto, quem mais  ordena!

Abril, agora coloca o teu melhor cravo vermelho ao peito e apressa-te. Ainda é longo o  caminho até Grândola, a terra da fraternidade. E não podemos chegar atrasados, afinal,  não fazes 50 anos todos os dias.