Como os abutres e bichos da terra procuram devorar os corpos dos caídos em campo de batalha, de uma forma apressada e sem dúvida repugnante, de modo que em pouco tempo nada reste da tragédia ocorrida naquele lugar, algo semelhante parece ter sucedido no processo da CGD. Incapaz de trazer nova vida aos mortos e já sem esperanças em Valhalla, a reestruturação da CGD teve igualmente em vista reduzir a pó e esquecimento o episódio anterior que devastou o nosso país: o assassinato impune do maior banco privado português.

O que sucedeu nesta nossa nação imortal foi a confirmação, por meio de um prejuízo colossal, da nossa desconcertante condição de comuns mortais. Como tais, há que respeitar e temer aquele que acima de todos nós se ergue; aquele que tudo pode, tudo observa e em tudo mete o dedo: o Nosso Estado. Sim, este nosso senhor das alturas, a quem forçosamente nos submetemos, esse que, quer acreditemos quer não, quer o amemos ou odiemos, todos invariavelmente somos obrigados, sob pena aniquiladora, a prestar o sacrifício de cada dia; é esse velho arbitrário de comprida barba e afiada língua que decide por sua conta os mandamentos do seu povo. Ai daquele que decide seguir outros deuses mais moderados, para esses estão guardados um sem número de injúrias e azares, que não hão de vir dos céus, mas das mãos dos próprios concidadãos, porque não há outro melhor que o Estado a excitar o s demónios do povo ansioso e aborrecido.

O desastre financeiro de 2005-2008 foi uma autêntica cruzada contra um homem, um assalto frenético, que não ligou a custos humanos, daqueles que se creem deuses ao verem outros treparem o monte Olimpo. O poder controlador do Estado foi posto em questão quando o sector privado criou o seu próprio império, livre, independente. A força do BCP nada tinha do mau cheiro do estatismo; tinha-se erguido ele mesmo, as suas asas por ele mesmo forjadas. Mas é evidente que tamanha pretensão e insolência não poderiam ter passado sem punição; é necessário fazer retornar o homem ao pó da terra, assim falou o Estado. E assim fez o Estado. Com José Sócrates no maior cargo de responsabilidade do país, ele tornou-se contra Jardim Gonçalves e assinou a sua sentença de morte.

Nunca vi os deuses derramarem sangue, nem mesmo quando os homens estavam convencidos que lutavam por eles. O sangue, quando escorre e se mistura na terra, é sempre humano . Assim, José Sócrates, desprovido de escrúpulos na pretensão de ser o mais poderoso, utilizou a CGD e o dinheiro dos depositantes como artilharia pesada contra o banco inimigo. Se, por acaso, milhares de pessoas, clientes de ambos os bancos, perdessem as poupanças de suas vidas, pois isso não faria senão parte da nossa condição como mortais.

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Facto: seis meses após o PS [de José Sócrates] vencer as legislativas há mudanças na geografia da administração da CGD, sendo a maior parte diretamente ligada ao partido vencedor; ou seja, o partido tomou desta forma a arma fundamental que necessitava para confrontar qualquer oponente privado, e para um governo que alimenta interesses internos, toda e qualquer estrutura privada pode tornar-se inimigo. Dito de outra forma, o governo português refletiu claramente o complexo de pequenez que aflige tantos “políticos” insensatos no nosso país: uma sede cega de controlo, que está disposta a utilizar
como arma contra os que considera inimigos a propriedade e direitos dos próprios cidadãos que dizia defender. Qualquer um que deixe de receber da mão do Estado, e que por sua vez crie a sua própria riqueza, sem procurar depender da “riqueza de todos”, pode ser facilmente visto como inimigo. Isto porque no nosso nobre país a noção de direito sempre foi mais predominante que a noção de mérito; são realmente poucos, entre os nossos compatriotas, aqueles que procuram mais trabalho em vez de melhores condições.

Não conheço melhor exemplo do estatismo em Portugal que na ação social. Os agentes sociais exigem que os mais necessitados recebam alimento exclusivamente de uma instituição, de modo que, quando novas são criadas, especialmente outras mais energéticas e menos discriminatórias, os ditos agentes refilam e barafustam porque tinham já tudo esquematizado, especialmente quando estas novas associações voluntárias se dispõem a dar em puro acréscimo! Os agentes e respectivas burocracias dão com objetivos, procuram habilitar os desabilitados para que estes contribuam também para o materialismo generalizado, para a “riqueza de todos” em vez de procurarem melhorar a situação daqueles que mais necessitam, e competem entre si colecionando números de beneficiados. O estatismo é muito feliz em dar, desde que recebamos apenas deles. É então fácil de entender a fúria dos nossos esquerdistas radicais ao verem um exemplo de sucesso privado tão escancarado diante deles; que ódio deverá germinar em seus ventres ao observar o sucesso vindo de fora, sem partilhar na cumplicidade mafiosa que coleta, impunemente, dos honestos trabalhadores deste país.

Eis o que estou a dizer: que o empréstimo de mais de quinhentos milhões de euros de depósitos de cidadãos a acionistas que procuravam derrubar a então direção do maior banco privado português, o BCP, foi a utilização deliberada do trabalho de vida dum incontável número de famílias, apoiantes ou não do então governo, a fim de subjugar aquilo que foi dos maiores monumentos de liberdade económica deste país. Mas a “blitz” não se limitou a este ataque à propriedade; a par desta total manipulação da economia por um governo que combatia abertamente contra o sucesso privado, iniciou-se também uma perseguição da forma mais populista e vil contra o próprio carácter do banqueiro bem-sucedido: nisso os sovietes eram sábios, não bastava matar, era necessário quebrar o espírito e destruir a imagem, senão arriscavam-se a produzir um mártir.

No meio desta euforia desmedida de “caça às bruxas” houve, no entanto, um pequeno fator que ficou de fora, passou-lhes ao lado: que o valor de um banco está em grande parte valorizado pela credibilidade da própria administração e, neste caso concreto em que o presidente é também o próprio fundador, o banco e a pessoa tornam-se como um só, sempre relembrados lado a lado. Quando a então administração da CGD conquista por fim a administração do BCP; ou seja, quando estes “amigos do governo” empregados pelo banco público na sua administração passam precisamente, diante todos, para a administração do banco privado, no final do processo da compra de grande número de ações deste último com dinheiro público quinhentos milhões de euros pertencentes a todos nós, depositantes sem se aperceberem do dano intangível da perseguição a Jardim Gonçalves, são pouco tempo depois surpreendidos com a chocante queda de valor do banco conquistado. Dito de uma forma mais apropriadamente descritiva, os piratas, de tanto bombardearem o navio comercial que muito cobiçam, quando finalmente lá põem os pés já tudo se acelera para as negras profundezas. E eis ainda o problema mais desastroso de toda a operação: as ações compradas com os nossos quinhentos milhões eram elas mesmas a garantia do empréstimo da CGD e, com a inevitável perda aguda de valor destas ações o banco público ficou, decisivamente, sem esperanças de rever o valor emprestado.

A capitalização bolsista do BCP que alcançou quase dezoito mil milhões em 2007, hoje nem chega a dez por cento desse valor; perdeu mais de dezasseis mil milhões. Apesar de o comunismo há muito ter sido desacreditado como opção inteligente, concordo que neste caso teria sido bem mais útil para o país se o Estado tivesse nacionalizado o banco, porque eu não creio que ninguém alguma vez tenha voltado a ver esses milhões perdidos. Foi uma operação de destruição de valor. Como (e repito) os valores emprestados da CGD tinham como garantia o próprio banco que compravam, não é mais que óbvio que todo esse dinheiro seria sugado para o mesmo buraco?

O descalabro que se seguiu é conhecimento de todos. Se, quando dois homens no mar se afogam mutuamente ao tentarem utilizar-se um ao outro para chegar à superfície, é claro que se um deles ainda por cima se preocupa não só em subir à superfície, mas também a empurrar o outro para baixo, como ambos se encontram agarrados, este estará, sem compreender, a empurrar-se a si também para a morte.

O banco BCP foi quebrado, a CGD feriu-se gravemente. E nós pagámos todos. De facto, desta situação parece que todos os envolvidos, inclusive o próprio país, saíram a perder. Mas o banco público, tal como a mãe natureza, tem ao seu serviço uma miríade de criaturas que a seu tempo acabarão por fazer voltar tudo ao normal; as memórias mais vivas dissipar-se-ão de modo que no fim nada perturbe o trajeto do nosso venerável Estado pelo curso da história. Todos ficam mais pobres, e não será assim que este se torna mais útil? Não agradecerão então os cidadãos por terem um Estado tão preocupado com os seus direitos? Depois de este desagradável acontecimento ter caído no esquecimento, após até os ossos mais duros terem sido roídos, quem não olhará para o Estado com esperanças de uma vida melhor? E nesse momento o Estado justificar-se-á dizendo para consigo: “eis os homens contentes, quem me dirá que não fiz um bom trabalho? É, portanto, mister que de vez em quando quebremos umas quantas cabeças, assim também se reduz a poluição! “

Estudante universitário