Na vigência do XIII governo constitucional, em 1997, procedeu-se à 4ª revisão constitucional (Lei 1/97 de 20 Setembro) que desconstitucionalizou o Serviço Militar Obrigatório, abrindo uma janela de oportunidade para a aprovação, mais tarde, de uma nova lei de serviço militar, a Lei nº 174/99 de de 21 de Setembro de 1999, que irá fixar a prestação do serviço militar, em tempo de paz e de forma exclusiva, num novo regime de voluntariado e de contrato (RV/RC).
O modelo adoptado passou a assentar, assim, num sistema semiprofissionalizado, caracterizado, no essencial, pela introdução de novas formas de prestação de serviço militar e pela extinção do Serviço Efectivo Normal, determinando o abandono do recrutamento geral em favor de uma forma de recrutamento de tipo individual.
Contudo, o facto de a Lei não dispor de mecanismos capazes de tornar o recrutamento de voluntários suficientemente atractivo, deu lugar a um reduzido fluxo de candidatos para a prestação de serviço, vindo a impor severas dificuldades no âmbito da sustentação do Sistema de Forças Nacional (SFN), com o sério risco de comprometer o integral cumprimento do quadro das missões constitucionais cometidas às Forças Armadas (FA).
Como resultado, o novo modelo, alicerçado num regime de voluntariado e de contrato, nunca conseguiu demonstrar a sua eficácia em termos de garantir o número de efectivos suficiente para o normal funcionamento das FA, realidade fortemente acentuada nos últimos anos, pese embora a maquilhagem dos números que o ministério da Defesa Nacional tem pretendido passar para a opinião pública.
Confirmando esta realidade, e de acordo com dados recentes, na última década verificou-se uma redução global dos efectivos das FA na ordem dos 24%, entre 2012 e 2020, com o Exército, mais penalizado, a apresentar um déficit superior a 50%, em Praças, com apenas cerca de 4 800 militares nesta categoria.
Em 2021, os efectivos nas FA continuaram a baixar, em termos globais, situando-se em cerca de 23 300 militares, valores que se situavam bem abaixo, inclusive, daqueles que tinham sido estabelecidos em 2013, na denominada Agenda 2020 para a Defesa, da responsabilidade do XIX governo constitucional de Passos Coelho, cujos princípios vão ser plasmados na Lei 6/2014, de 01 de Setembro, do mesmo governo, que vai proceder 1ª alteração à Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA)), e na qual se apontava para um intervalo entre os 30 000 e os 32 000 efectivos, situação que tão pouco o propagado Plano de Acção para a Profissionalização do Serviço Militar, apresentado pelo governo em 2019, conseguiu inverter.
Esta situação não terá sido mais do que o culminar dos efeitos devastadores daquela Reforma, que apontava, no seu articulado, para cortes adicionais no âmbito do pessoal e das estruturas das FA da ordem dos 30%, e cujos valores, no caso dos efectivos, ficaram largamente afastados do plafond fixado, como atrás referido.
É reconhecido que, nas últimas décadas do século XX, o recurso ao serviço militar voluntário se generalizou no mundo ocidental, e que o conceito da conscrição tenha sido considerado por muitos actores políticos como uma realidade ultrapassada e de natureza conservadora.
Para o efeito não terão sido estranhas, certamente, as alterações geopolíticas ocorridas no dealbar da década de 90 do século passado, no antigo espaço da União Soviética, que culminaram com a sua desintegração, e que as democracias liberais do ocidente, na urgência de colher os denominados dividendos da paz, aproveitaram para deslegitimar técnica, económica e socio politicamente o modelo das Forças Armadas de conscrição.
No entanto, nos últimos anos, tem-se vindo a assistir a significativas modificações nos quadros geoestratégico e geopolítico mundiais, e que recentemente culminaram com o conflito que opôs a Federação Russa à Ucrânia, para surpresa daqueles que acreditavam na paz perpétua kantiana, obrigando a reconsiderar o estabelecimento de políticas capazes de garantir a necessária mobilização dos efectivos militares suficientes, no sentido de precaucionar uma adequada resposta face a potenciais conflitos, no futuro.
Conscientes de que a necessidade de recrutar se constitui como um factor determinante para a manutenção da sua capacidade militar de defesa, vários países europeus que, entretanto, tinham abandonado o serviço militar obrigatório no final do século passado, vieram a admitir que os modelos profissionalizantes que tinham adoptado não reuniam mais as condições necessárias para dar resposta, com prontidão e eficácia, à emergente matriz potencial dos riscos e ameaças no quadro da segurança internacional.
Foi assim que, em 2017, a Lituânia e a Ucrânia reintroduziram o modelo de conscrição para o recrutamento militar das suas FA, a par da Suécia, em 2018, que havia suspendido aquela forma de prestação de serviço, em 2010.
Numa aproximação semelhante, o resultado de um referendo nacional realizado na Noruega, em 2018, sobre a questão do serviço militar, viria a manter, por larga maioria, o modelo de conscrição para as suas FA, alargando-o, inclusive, aos cidadãos do sexo feminino, enquanto na Polónia e na Roménia, importantes sectores sociais e políticos têm vindo a carrear para a agenda política a questão do Serviço Militar Obrigatório, tendo em vista a sua recuperação, cerca de dez anos depois de este modelo ter sido abandonado.
Em Portugal, em termos de percepção pública, a obrigatoriedade do Serviço Militar só começou a ser contestada a partir de meados dos anos 80 do século passado, sobretudo como resultado da pressão exercida pelas juventudes partidárias dos principais partidos políticos no sentido da sua abolição, a par de uma conveniente e enviesada cobertura mediática sobre o assunto.
Como resultado, assistiu-se a um processo político pouco rigoroso e quase sempre manipulador em termos da avaliação da instituição do Serviço Militar Obrigatório, complementado por um fluxo de opinião publicada onde pontificaram as posições de certas elites urbanas, bem como de algumas chefias militares, acabando por inviabilizar uma reflexão séria e uma discussão política empenhada, a par de um indispensável debate nacional que uma tão importante matéria deveria exigir.
Deste modo, ficava criada a janela de oportunidade para o agendamento político sobre a matéria, concretizado através do objectivo comprometimento do XIV governo constitucional do partido socialista, com a aprovação, no Parlamento, da Lei do Serviço Militar nº 174/99, de 21 de Setembro.
Após a entrada em vigor da referida Lei, que ditou a exclusividade do serviço militar em RV/RC, a partir de Novembro de 2004, as FA foram confrontadas com um novo paradigma, que viria a induzir assinaláveis dificuldades na respectiva sustentação, que se foram agravando até aos dias de hoje, condicionando, de forma efectiva, a sua organização e funcionamento.
Assistiu-se à desarticulação do modelo de recrutamento existente até à data, que se traduziu no esvaziamento de Unidades, no abandono de outras e na visível degradação do produto operacional do SFN, chegando, actualmente, a colocar em causa a credibilidade das próprias FA no cumprimento das missões constitucionalmente definidas.
E hoje assiste-se, perante a exiguidade dos efectivos, a uma manifesta fragilidade nos processos de recrutamento, reflectindo-se numa suspeitosa falta de rigor nos critérios de selecção, realidade que, associada às insuficientes condições de atractividade para a prestação de serviço, se vem traduzindo numa deficiente motivação e qualidade dos incorporados nas fileiras.
Torna-se, então, legítimo questionar se as actuais políticas públicas sobre a prestação de serviço militar em Portugal, no âmbito do quadro de limitações e vulnerabilidades reconhecidas, poderão gerar, alguma vez, as condições indispensáveis às FA para poderem responder, cabalmente, aos preceitos constitucionais a que estão obrigadas, bem como reunir as capacidades necessárias para fazer face à matriz do empenhamento fixado no próprio Conceito Estratégico de Defesa Nacional.
Contudo, até ao momento, sucessivos governos das República têm vindo a recusar o agendamento político sobre a questão do serviço militar, impossibilitando deste modo a reflexão e o debate público sobre uma política que, sendo estruturante para a Defesa do País, é reconhecidamente relevante para o reforço agregador da identidade nacional.
Deste modo, afigura-se como incontornável que, face ao quadro das reconhecidas vulnerabilidades do actual modelo de prestação de serviço militar em Portugal, e perante as assinaláveis mudanças dos quadros geopolítico e de segurança europeus em presença, a sociedade civil possa ser chamada a uma participação plena e activa num debate público e esclarecido sobre tão relevante, como sensível matéria, e do qual não poderá ser excluída, sob pena de ver cerceados os seus mais elementares direitos de cidadania.