É perfeitamente natural que o alarme, por estes dias, à volta do “perigo da direita radical” não se faça acompanhar de um alarme equivalente à volta do “perigo da esquerda radical”.  Até porque, como é sabido, a Esquerda é sempre democrática, frequentável e coligável, e nunca “exacerbada”, “radical” ou “perigosa”. Já a Direita que não seja “moderada” (qualificação que só obtém quando se porta bem e jura solenemente não transpor as “linhas vermelhas” que lhe traça a Esquerda) é invariavelmente infrequentável, incoligável, “radical”, “exacerbada”, enfim, um “perigo para a Democracia”.

Verdade e propaganda

No século XX, os regimes inspirados pela Esquerda Radical excederam largamente em número de vítimas, em longevidade e em galeria de horrores os inspirados pela Direita Radical. Mas parece que, por um estranho fenómeno de esquecimento, a Esquerda é automaticamente absolvida de todo e qualquer “crime contra a Humanidade”, alegando “recta intenção”, argumentando que tais “excessos” fazem parte do caminho para que se cumpram os seus generosos e imaculados ideais, ou que os “desvarios” são fruto da acção de um ou outro líder transviado.

É bem conhecida, nesta matéria, a justificação, na esquerda e à esquerda, de uma ideologia idealista, revolucionária, igualitária e fraterna, inesperadamente “traída” por Estaline, ou por Mao, ou por Pol Pot, ou por Macias Ngema, homens com maus fígados e piores sentimentos, excepções, desvios, enganos. Já Hitler e o hitlerismo, longe de constituírem um desvio, uma excepção ou uma aberração, são, tão só, a expressão acabada de toda a Direita, passada, presente e futura.

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Raymond Aron, que morreu há 40 anos, foi um dos pensadores que viu no comunismo uma “religião secular”; um cristianismo sem transcendência, isto é, reduzido a uma prática política, económica e social de igualdade e elevando ao rubro o pior da Igreja e das igrejas: a superioridade moral, o fundamentalismo, a exercício inquisitorial e a aniquilação do “infiel”.

Aron foi um polemista militante e combatente, liberto do respeito acrítico dos intelectuais da sua geração pelas palavras sagradas “Esquerda”, “Revolução”, “Proletariado”. Dedicou-se à desconstrução do comunismo e dos intelectuais comunistas, em obras como Les Marxismes Imaginaires e L’Opium des Intelectuels, em que acusou os “mandarins” do seu tempo, de que Sartre era o modelo, de absolverem, em nome do fim, todos os crimes e horrores do comunismo – enquanto surgiam, quais puritanas vestais, na primeira linha da denúncia de qualquer violência à direita.

O fim do comunismo

O comunismo praticamente desapareceu com a implosão da União Soviética e quando a China de Pequim, a partir de Deng-Xiaoping, se tornou um nacional-capitalismo autoritário e de direcção central. O que resta de regimes comunistas assumidos como tais – Cuba, Venezuela, Coreia do Norte – são exemplos tão pouco recomendáveis que nem os partidos comunistas que restam ousam gabá-los. Pelo menos os partidos comunistas sobreviventes no Parlamento Europeu, cuja representação é hoje exígua: o Partido Comunista Francês tem um deputado num grupo de 74; os Belgas têm um em 21; os checos, um em 21; os gregos, dois em 21; os portugueses, dois em 21 e os espanhóis, dois em 54. Proporcionalmente, os mais bem colocados são os cipriotas, que têm dois em seis.

Este desastre da esquerda comunista explica-se pelo divórcio das classes trabalhadoras a que as novas esquerdas têm vindo a condenar a Esquerda como um todo.  Estas esquerdas estão bem acantonadas na Academia e nos media, impondo o seu pensamento como pensamento correcto e a sua retórica como retórica oficial; e o Centro, o Centrão, apressa-se a declarar como inimigo principal, não estas esquerdas pós-comunistas, fracturantes, globalistas e decadentistas, não o estatismo governamental, mas a direita nacional e popular, ou a direita nacional-conservadora, para onde tendencialmente têm vindo a migrar as negligenciadas classes trabalhadoras.

Direitas populares

É esta a direita que está a ganhar espaço na Europa e nas Américas, a ponto de governar em países como a Itália e a Hungria e de ter uma presença eleitoral poderosa em França, na Polónia, na Suécia, na Finlândia, em Espanha e na Alemanha.

Os ideários destas direitas são diferentes, como diferentes são os valores e tradições próprias de cada nação, e a sua subida eleitoral nos últimos anos também tem razões diferentes ou responde a diferentes conjunturas: nalguns casos, a imigração culturalmente diferente, não controlada, com comunidades difíceis ou impossíveis de integrar nas respectivas sociedades; noutros, como em Espanha, os separatismos; noutros ainda, como em Portugal, o centrismo dos dirigentes da direita do regime, com a ausência, ao fim de meio século de Terceira República, de um partido de direita fora do centro; e em quase todos, a corrupção, o compadrio e o afastamento do povo dos partidos do “arco da governação”.

Os seus inimigos e a generalidade dos media acusam estes partidos de direita popular de “populismo”, conceito que, geralmente, não se dão ao trabalho de explicar, mas que, pelos vistos, no quadro maniqueísta em que se movem, não toca à Esquerda. “Populista” passa, assim, a ser sinónimo de mau, eleitoralista, demagogo, anti-democrata, enfim, de perigoso para os direitos e liberdades individuais e para a democracia.

Ora a verdade é que, ao contrário do que acontecia nas chamadas “Democracias Populares” do pós-guerra, onde os comunistas, chegados ao poder, já de lá não saíam, os partidos da Direita dita populista não têm acabado com a Democracia: têm acedido ao poder por eleições e, quando as têm perdido, têm saído do poder, como já aconteceu com os húngaros do Fidesz e voltou agora a acontecer com os polacos do Lei e Justiça.

Portugal e o Futuro

Portugal é hoje o país mais à esquerda da Europa. Dá-se, porém, a infelicidade de a crise com que tão visivelmente se debate coincidir com os preparativos para a celebração do meio-século do regime; celebração essa largamente subvencionada, assinalada e acarinhada pelo poder e pelos partidos do sistema.

Aparentemente, a boa notícia é que, a toldar a celebração, só há um mal, um único “perigo para democracia”: a ascensão da “direita populista, radical e exacerbada”.  É perante este “perigo iminente” que empalidecem até à irrelevância os vários e sucessivos episódios que tornam públicos e notórios os males endémicos do regime – a cumplicidade e corrupção da classe política, a ausência de reformas estruturais, o colapso progressivo do Serviço Nacional de Saúde, o estado da Educação, o aumento da pobreza real, moral e ideológica, a passividade das oposições.

Assim, é com o “perigo da extrema direita” que o manto diáfano da propaganda vai tentar ocultar o resto.  Mas poderá o resto ocultar-se?

Uma coisa é certa: o debate eleitoral entre “fascistas” e “corruptos”, promete ser tudo menos edificante.