A falta de memória em política é dos comportamentos mais propícios a serem estudados psicologicamente, mas a verdade é que o país está hoje mergulhado num limbo de instabilidade política.
Não há maioria absoluta na Assembleia da República.
Não há maioria absoluta na Assembleia Legislativa dos Açores.
Não há maioria absoluta na Assembleia Legislativa da Madeira.
O facto de nenhum partido possuir, sozinho ou coligado, uma maioria que sustente o tempo constitucional dos mandatos deveria levar-nos a pensar como é que aqui chegámos.
Muitos, à esquerda, apressam-se a culpar Marcelo Rebelo de Sousa por ser o obreiro da instabilidade política mais evidente que se viveu em Portugal. Mas isso, só alguém com uma memória muito curta, ou, aliás, taticamente seletiva, poderá dizer.
O país conheceu várias formas de governação até aos de dias hoje, desde maiorias absolutas a minorias relativas. A questão essencial é quando tudo mudou. E foi em 2015. Arrisco-me a dizer que os governos, que estão agora em funções por esse Portugal fora, devem a António Costa o engenho que arranjou para, depois de ter perdido as eleições para lá de “poucochinho”, “assaltar” o Palácio de São Bento e pôr em marcha uma operação aritmética que o país nunca antes vivera.
Foi em 2015 que o panorama da governabilidade mudou terrificantemente. Foi em 2015 que ficou marcada uma nova forma de arranjos parlamentares, e desde aí que nada voltou a ser o que era.
Já lá vão os tempos em que quem ganhava eleições governava. Quem ganhava eleições presidia às Assembleias. Quem ganhava eleições tinha o benefício da dúvida e via o seu programa de Governo aprovado. Graças a António Costa tudo mudou.
Hoje, a instabilidade política não se deve às decisões do Presidente da República, mas sim à caixa de pandora que o Partido Socialista abriu em 2015. Dissiparam-se as mais antigas convenções, que davam às instituições a credibilidade que lhes é devida, nem que seja pelo respeito que merecem os portugueses.
Em 50 anos de Democracia, o PS nunca sustentou um Governo do PSD, já o contrário não se pode dizer. Em 2015, chegara a altura dos socialistas erguerem as convenções que a eles sempre foram aplicadas, mas nunca exigidas. Falharam, para não mais variar. Os ventos no Largo do Rato mudaram e com isso foram decapitadas um conjunto de regras há muito estabelecidas no regime político, deixando para trás a tolerância e, sobretudo, o respeito pelos votos maioritários.
O Partido Socialista reinventou-se, para pior, colocando em causa a confiabilidade dos eleitores nas instituições e nos próprios partidos políticos. O rasgar de tradições fez-se na ânsia de, depois de um governo que salvou o país de um crise financeira gravíssima, regressar ao poder, custasse o que custasse, doesse a quem doesse.
E doeu. Olho hoje para as instituições democráticas e vejo, efetivamente, que doeu. A convivência política já não dispõe da mesma estabilidade, nem tão pouco da mesma durabilidade, e isso deve-se simplesmente ao que aconteceu em 2015. Porque, na altura, os cravos cantavam Abril, “era o esplendor democrático”, dizia-se. Hoje, caso o bloco político contrário ao da esquerda sonhe, sequer, em repetir tal façanha, tornar-se-ia, rapidamente, num atentado democrático digno de terroristas.
O que aconteceu em 2015 não correspondeu à vontade maioritária do povo português, assim como o que aconteceu em 2020, nos Açores, não correspondeu à vontade maioritária do povo açoriano. Os critérios, as regras, as convenções e o princípios democráticos aplicam-se a todos, sem exceção, e independentemente das circunstâncias representarem a derrota ou a vitória.
Se hoje o PS se recusa a assegurar o cumprimento do mandato que o povo conferiu a Luís Montenegro, é porque em 2015 tudo mudou. Se hoje o PS se recusa a assegurar o cumprimento do mandato que o povo atribuiu a Miguel Albuquerque, é porque em 2015 tudo mudou. Assim como, se em 2020, nos Açores, o PSD se recusou a assegurar o cumprimento do mandato com o qual o povo responsabilizou o Partido Socialista, é porque em 2015 tudo mudou.
Há, inegavelmente, um ponto de viragem no sistema político que impacta na nossa vida democrática, e que mina a firmeza das instituições que ficam dependentes das levianas vontades partidárias, agarradas aos interesses mais rentáveis politicamente. Ainda assim, depois disto, Costa e Pedro Nuno demonstraram bem ao que vinham. António Costa dizia que “se algum dia precisar dos votos do PSD para governar, demito-me no dia a seguir”, já Pedro Nuno dizia que “nunca mais a esquerda precisará dos votos da direita para governar”.
Tamanha arrogância desmedida representa bem a falta de compromisso para com o regime democrático que, sem patriotas, não voltará a ser o mesmo. As vontades maioritárias do povo não podem ser substituídas pelas vontades minoritárias dos partidos, e assegurar isso cabe a quem sempre teve a incumbência de governar o país – ao PS e ao PSD.
Parece-me que nenhum se quer comprometer com essa ideia, por ela ser, neste momento, suicida partidariamente. Daqui a uns tempos, ela passará a ser suicida democraticamente, e aí alguém terá de dar a cara. Mas não esqueçamos nunca o que aconteceu em 2015.
Que país seríamos se nada tivesse mudado em 2015?
07.06.2024