Decorreram 60 anos. 1964. É justo recordar. Jaime Cortesão escreve o livro “Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal”. Com prefácio de Vitorino Magalhães Godinho, grande historiador institucionalista português do século XX.
O que foi escrito? O estudo das relações entre Geografia e História. A doutrina das zonas políticas ativas ou zonas geográficas favoráveis de eclosão de autonomias políticas, embriões futuros de Estados. A sua aplicação a Portugal. Na essência, trataram-se, de facto, de fatores geopolíticos, agora revisitados e aperfeiçoados, à luz da atualização dos conhecimentos históricos e políticos.
O Autor foi pioneiro na importância dada à relação, à comunicação entre formações geográficas e géneros de vida diferentes (ex: terrestres e marítimos), à acumulação de capacidades económicas fortes e diferenciadas (ex: excedentes agrícolas e comerciais), com oportunidades favoráveis à eclosão política onde a densidade populacional aumenta.
As fundações, estruturas e pilares onde assentou a identidade política portuguesa foram por ele iniciadas. Cortesão estudou a atlantização do povoamento, a rede de portos litorais entre Minho e o Mondego, as navegações fluviais destas áreas e junto ao mar. Insistiu na relevância da concentração e densidade populacional para a autonomia política. Fez relevar a especialização geográfica portuguesa que baseou uma etnografia diferenciada por onde, designadamente, se movimentaram e fixaram barqueiros, pescadores, navegadores, soldados, marinheiros, comerciantes, feitores, migrantes e servos rurais excedentários à procura de melhor vida.
A aplicação a Portugal dos fatores descritos funda a sua autonomia política no século XII. Tais fatores, quando afetados em momentos de ruptura ou crise, voltam a reerguer-se em expressões profundas de revolta e afirmação popular, como na crise de 1383-1385. É por isso que Cortesão refere os fatores democráticos na formação de Portugal, reelaborados e reerguidos em vários momentos históricos, enquanto expressão de identidade política portuguesa.
O seu estilo de escrita romanceado, com alma e paixão, suscitou críticas. Para uns, uma ênfase ultranacionalista. Para outros, a ausência de método científico rigoroso. Num tempo de Estado Novo, a utilização do termo “democráticos”, só por si, revelava ousadia e coragem. O tempo não desmentiu as suas teses. O historiador medieval José Mattoso confirma quase cinquenta anos mais tarde (2010) a importância da densidade populacional e a geração de excedentes agrícolas no Minho e Douro Litoral como particularidades que podem ter induzido à autonomia política.
Que fatores geopolíticos mais atualizados podemos utilizar nesta discussão? A palavra “porto” identifica Portugal. «Porto», proveniente do termo latino “Portus”, segundo o Digesto (16, 59), é o lugar a partir do qual se importam e exportam mercadorias. A sua ligação ao comércio ditou o aparecimento de cidades litorais e de poorter (burgueses, em holandês).
Estes modos de vida, práticas, atitudes, saberes e fazeres são consideradas instituições na Ciência Política, segundo Huntington. As instituições são valorizadas e autorreforçam-se quando conferem particularidades ou vantagens específicas. Quais as que conduziram à exigência da autonomia política portuguesa?
A vantagem do transporte. Mais barato por via marítima. Cerca de 1/6 do custo do transporte terrestre, de acordo com os cálculos do geógrafo mundial Diamond. Vantagens incomensuráveis num mundo medieval. Geradores de poupanças e possibilidades de acumulação de riqueza. Catalisadores de instituições políticas de suporte para sua defesa e segurança. Quantas cidades-Estado, repúblicas marítimas ou redes hanseáticas se formaram no Mediterrâneo e na Europa Atlântica para tutelar esta riqueza? Os exemplos históricos são numerosos.
Outra fonte de poder: a necessária ou conveniente utilização de meios monetários de pagamento. Contextos indutores de cunhagem de moeda e de soberania económica centrípeta numa época (séculos XII-XIII) de remonetarização acelerada em que a propriedade móvel encontrava novas formas comerciais de geração de riqueza.
Transporte e monetarização são fatores de comunicação e coesão entre espaços onde uma navegação de cabotagem é possível e desejada, pela diversidade obtida no comércio entre zonas de transição climática (Norte e Sul, Atlântico e Mediterrâneo). E de culturas, produções e zonas de influência diferenciadas, que eram motivo de especialização cristã e árabe no mundo medieval peninsular.
A vantagem geopolítica de Portugal, reconhecida como única num Estado que tem hoje, no contexto europeu, uma dimensão geográfica relativamente reduzida, é exatamente o ter feito este cruzamento entre Atlântico e Mediterrâneo, entre duas civilizações distintas, como dizia Orlando Ribeiro, tendo como fator de coesão o mar.
Num mundo de reconquista peninsular cristã, é reconhecida historicamente a importância militar das Cruzadas nos séculos XII e XIII de apoio à ordem política portuguesa, como também o papel da Igreja Católica na capacidade de disciplina e ordem controlada nas periferias. Nestas, num mundo feudal de insegurança e resposta militar descentralizadas, foram desejadas novéis e desmembradas autonomias políticas, que permitiam, pela escrita e leitura, aos letrados clérigos o poder de sustentar a necessária burocracia administrativa.
O que hoje sustenta a identidade política portuguesa? Exatamente o sentido de periferia, de orla exterior, de fronteira sucessivamente reelaborada. Na história, o Reino do Algarve, primeiro, e, após, o projeto de expansão além-mar foram relevantes fatores geopolíticos. Hoje, temos o forte sentido de identidade percecionado nas comunidades portuguesas emigrantes. A etnografia sempre foi seu suporte.
A identidade política portuguesa reside na necessária disciplina experimentada destas periferias, primeiro nos portos, após em cidades, depois em fronteiras, através de formas mais elaboradas de participação e auto-organização de interesses. Que permitam comércio, rendas fundiárias e tributação local. Um complexo público-privado difícil, na atual linguagem política. Mas que serve bem para se compreenderem os forais, as dinâmicas municipais e de auto-organização tão bem sustentadas por Alexandre Herculano na formulação dessa identidade.
É por isso que Cortesão refere muito justamente os fatores democráticos na formação política de Portugal. Mecanismos de apoio mútuo vão ser necessários numa sociedade medieval da reconquista peninsular caracterizada por incertezas advenientes de guerras, epidemias e fomes, onde a resposta política possível tem de ser fragmentada, distribuída e periférica.
A autonomia política de Portugal é reação a dinâmicas centrípetas peninsulares, de Leão-Castela no século XII e que terá continuidades no século XIV, com a dinastia de Avis ou, mais tarde, no século XVII, com as Guerras da Restauração e, ainda no século XIX, já num contexto europeu alargado, após as invasões napoleónicas.
Os momentos vitoriosos de afirmação de identidade política portuguesa tiveram sempre consequências favoráveis posteriores, com maior participação popular nas cortes medievais e na época moderna, bem como na elaboração da primeira Constituição em 1822.
Ao comemorarmos os 50 anos do 25 de Abril, falar, hoje, de autonomia, de unidade e soberania nacionais é exaltar, também, os valores democráticos. Alexandre Herculano, Jaime Cortesão, José Mattoso, entre outros, merecem sempre serem recordados por esse contributo inegável para a compreensão do Portugal Geopolítico. Homenageando-os, estamos a fazer o melhor para defesa da Democracia, das Liberdades e valores fundamentais do Estado de Direito Português.