Há cerca de uma semana, uma vez mais, veio o Senhor Secretário-Geral do Conselho Nacional da Água, Eng. Poças Martins, referir-se aos problemas da falta de água no país, insistindo na tecla que os principais responsáveis pela carência, pelo desperdício e pela perda de milhões de euros no mar se deve aos agricultores, porque regam mal, gastam demais e, pior, não pagam nada pela água.

Nenhuma destas afirmações é verdadeira, conforme tentarei explicar, mas sim gratuitas, enganadoras e ilusórias, cuja conjugação e mistura apenas agrava a situação, confunde as pessoas e adia um problema de proporções gigantescas que Portugal tem em mãos e que, à semelhança do adiamento da decisão do aeroporto, se prepara para adiar também no que respeita à Água.

Adiar o aeroporto é mau para a economia, dificulta o crescimento, mas podemos viver sem ele, enquanto que adiar a resolução do problema da água, condena-nos. Condena-nos ao empobrecimento, à miséria, à mingua, à “misericórdia” espanhola, à potencial fome, à desertificação, ao abandono e, por fim, a mais e piores incêndios que tudo devastam e irremediavelmente tudo destroem, a começar pela vida de muitos.

Vamos aos factos. Começo por me posicionar e, até, justificar. Sou agricultor, mas sou também quem tem a missão de os representar e defender. A eles e a essa agora “nociva” actividade, que eu pontuo de nobre, mas que, afinal, para os que “mandam”, é um alvo a abater… a Agricultura.

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Sou agricultor e pratico regadio, e sim, uso muita água, rego por aspersão em Agosto, e não só, rego também por alagamento. É assim porque tem de ser e é correcto, não por teimosia, capricho ou ignorância, como o Eng. Poças Martins tenta fazer passar nas suas doutas afirmações.

Diz ele que os agricultores não pagam a água que “vão buscar” (palavras suas) aos poços, aos rios, aos furos, que não fazem contas e por isso é perversa a forma como regam, e que pagam “apenas” 0,03 cêntimos por litro em Alqueva.

Na agricultura usamos o m3 como unidade, não o litro. Ou seja, nas contas do Eng. Poças Martins, o m3 de água para rega em Alqueva teria um custo de 30 cêntimos, mas não tem, não chega ainda aos dez (dados da EDIA).

Se um agricultor no Alqueva regar com 4000 m3 por hectare, paga por essa água, que transforma em alimentos, cerca de 400 euros. Como Alqueva abrange hoje 150.000 hectares, o tal “pouco” que os agricultores pagam são 60 milhões de euros, sem contar com as taxas e custos da operação.

Para regar há muitos outros custos. Taxas (que na prática são impostos), energia, equipamentos, instrumentos de gestão, alguns munidos de Inteligência Artificial, medidores de caudal, sondas electrónicas, essas coisas “simples” que os agricultores usam para poupar e serem eficientes no uso do recurso, mas que aqueles que “mandam” insistem em ignorar. Por tudo isto os agricultores pagam, e pagam muito.

Ainda sobre o pagar, a minha opinião é a oposta da do Eng. Poças Martins. Se os agricultores são responsáveis pela produção de alimentos, se contribuem para a soberania alimentar e para a diminuição da nossa dependência das importações, se a quase totalidade da agricultura tem de ser regada devido à nossa condição geográfica, que tal os agricultores serem pagos para regar? Parece provocatório, eu sei, mas em termos reias e conceptuais é assim que deveria ser. Ou seja, tudo ao invés daquilo que os que “mandam” pensam e se preparam para agravar.

Quanto ao preço da água, a que se diz que os agricultores não pagam, eu digo mais. Não pagam os agricultores como não paga ninguém. A água não pode ser paga. Porquê? Porque a água é um bem essencial à vida, como o ar ou a luz. O seu valor é absoluto e o que é absoluto não tem preço. Dito isto, o que tem preço são os custos. Custos de disponibilização, de armazenamento, de tratamento, de transporte, de gestão, de oportunidade. Sãos estes custos que devem ser pagos. Uns directamente, outros indirectamente, alguns eventualmente subsidiados, mas são custos. A água (H2O), como elemento, não pode ter preço. É por isto que é falsa a afirmação de que os agricultores não pagam a água que usam. Pagam, e pagam muito. É por esta mesma razão que somos muitas vezes obrigados a pagar mais por um litro de água do que por um litro de gasolina. Custa, mas até se aceita. Porquê? Porque sem água não vivemos, enquanto que sem gasolina…

Voltando ao assunto. Dizer que a água devia ser mais cara, associando esta afirmação a uma outra máxima do Eng. Poças Martins, quando afirma que em Portugal não se deviam cultivar cereais (não sabia que também era agrónomo), porque precisam de ser regados e porque, implicitamente, é fácil serem adquiridos no exterior, está a dizer aos portugueses que os preços dos alimentos são demasiado baixos. Sim, se os custos aumentarem o preço final tem de subir (desculpem se estou errado, mas sou agricultor, não sou economista). E quanto à garantia de produtos alimentares importados, por vezes há umas guerras que nos fazem pensar os assuntos de outra maneira. Ou será por acaso que a agricultura faz parte do conceito de Defesa Nacional?

E refere… os agricultores só pensam em subsídios e mais subsídios. Pois é, já pensaram no custo dos alimentos no dia em que os subsídios aos que os produzem terminarem? Preparem-se para pagar 30 ou 40% mais pelo que compram no supermercado, sem estar a trazer para a equação o que se passa hoje com a inflação. Pensem um pouco, façam contas, já que, na opinião do Sr. Professor, os agricultores não as fazem. Se não as fizessem já não eram agricultores, garanto-vos.

Continuando, diz o Eng. Poças Martins que não necessitamos de mais barragens e dá como exemplo as que os espanhóis têm, com pouca água, é certo, mas com alguma. Diz também que não vale a pena construir barragens porque não vão encher (o mesmo que alguém disse sobre o Alqueva, lembram-se?). Façamos um exercício simples: se faltar a água em casa e tivermos na dispensa 10 garrafas de litro meio cheias, na prática temos 5 litros de água. Dá para umas sopas, para beber alguma e para esperar por melhores dias. Mas se não tivermos nenhuma garrafa, então sim, temos um problema e ficamos dependente dos vizinhos, que se precaveram.

É o que se passa com a água que está em Espanha, armazenada nas barragens que eles fizeram e que nós, arrogantemente, agora reivindicamos como “nossa” porque os rios são partilhados, etc, etc. Discussão à parte, quando não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. O facto é que eles têm-na (à água) e nós não, ponto final!

Tudo isto para passar a inverter o sentido deste texto. Há que apontar o dedo aos nossos responsáveis. Sim, a míngua que atravessamos é também culpa dos nossos que “mandam”, dos Engºs. Poças Martins deste país que enterram a cabeça na areia e insistem em adiar o inadiável. O que falta para percebermos que temos de agir, de dar corpo à engenharia, à inteligência e à vontade?

Em Portugal toda a água que é alvo de gestão, através das barragens existentes e das captações subterrâneas ou superficiais, é de cerca de 20% das disponibilidades que acorrem ao país, mas insistem que temos de “viver com o que temos”. Pois eu digo que se não nos dispusermos a ambicionar em gerir e manipular até pelo menos 50%, temos entre mãos um problema de dimensões e consequências difíceis de imaginar. O resultado não será bom de ver. O deserto do Norte de África já chegou ao sul de Portugal, já galgou o mediterrâneo. Ou nos preparamos para a batalha contra essa invasão, ou seremos dizimados do mapa.

Sem água, a única arma eficaz para essa batalha de titãs, não seremos capazes de ir à luta. É a única ferramenta que permite mantermos pessoas no campo, população e economia no território e alguma comida nos supermercados. Se assim não for será bom que os que “mandam” pensem em reforçar, e muito, o orçamento do combate aos incêndios rurais, pois, à semelhança de outros abandonos do território bem conhecidos e na ordem do dia, será o fogo que tomará conta desses lugares onde o futuro passará à história. E será bem mais rápido do que pensam.

Precisamos de encarar o problema de frente, tal como um toiro que se volta para o forcado que o desafia. É tarde para lhe voltar as costas, há que pegá-lo, confiante nos ajudas que atrás de si virão para consumação da façanha. Ou seja, avancemos em conjunto; decisores, técnicos, agricultores e população em geral. O problema é sério!

Precisamos de mais água, de retirar a demagogia do discurso, de deixarmos de viver na ilusão que o Eden virá, de sermos objectivos e pragmáticos, responsáveis pela construção de um futuro para os que nos sucederão. Temos recursos no país, a começar pela água, em terra e no mar, temos acesso a instrumentos financeiros irrepetíveis, como o PRR, o PT 2030 ou mesmo a PAC, temos engenharia de excelência com provas dadas dentro e fora de portas, temos agricultores evoluídos (nem todos, é certo), temos conhecimento disponível e a ciência está focada também nestes assuntos. O que falta? Falta humildade e vontade, nada mais, mas essas, estão nas mãos dos que “mandam”.

Termino, ficando muito por dizer ou explicar, mas o texto já vai longo. Recorro a uma pergunta que, não sendo da minha autoria, é célebre e resume bem o que justificou este meu grito de indignação. Eng. Poças Martins, em abono da verdade, na defesa da agricultura nacional e da honra dos nossos agricultores… Por que no te callas?