A pandemia está a abrandar em Portugal, mas o nosso Governo, lesto, quis dar um exemplo e decidiu aplicar uma cerca sanitária em duas freguesias de Odemira onde os números seriam aparentemente alarmantes.
Oitenta infetados! Afinal parece que não eram assim tão alarmantes. Não eram assim tantos infetados nem sequer uma curva ascendente. Mas sendo preciso medidas, cerque-se!
Só que o show off da cerca saiu caro, pois colocou a descoberto uma situação desde há muito conhecida, a dos trabalhadores migrantes daquela zona. E eis que se descobre (ou melhor, que se decide descobrir) que há muitos migrantes sazonais a trabalhar nas quintas daquela zona. E que desses trabalhadores, também muitos deles vivem em condições precárias e quase todos abaixo dos standards europeus.
Imediatamente, vorazes jornalistas e comentadores se lançam em busca de sangue: tráfico humano, escravidão, maus-tratos! Felizmente, quem conhece a verdade, sabe que na vasta maioria dos casos não se verificam essas situações. A realidade com que a maioria dos empresários agrícolas tem contacto nada tem a ver com as descrições de abusos ou maus-tratos. Nem isso é relatado pelos trabalhadores agrícolas que, a final, prestam trabalho nas quintas desses empresários.
O cerco deu origem a uma situação dramática para os agricultores de frutos vermelhos (mais precisamente framboesas). Os seus trabalhadores deixaram de poder ir trabalhar. Não podem passar a fronteira para a freguesia onde está a sua quinta.
Os frutos vermelhos estão no pico das colheitas. É uma janela de dias! Ou são colhidos agora ou apodrecem nas árvores. São milhões de euros que estão nas árvores e que, de repente, ali ficaram sem poderem ser colhidos. Pior, se não forem colhidos e apodrecerem nas árvores, darão origem a doenças e pragas que afetarão o resto da plantação.
Os trabalhadores sazonais, por sua vez, que se deslocam para aquela zona para ganhar o dinheiro desta época de colheitas, ficaram sem trabalho. Não podem passar para a freguesia onde está a sua quinta! E quando não trabalham, não ganham.
Conhecedores desta situação dramática, o que fizeram os políticos? Agiram única e exclusivamente por tática política. Trataram da sua imagem. Nada mais!
Analisaram a forma como eram tratadas as notícias nos telejornais e rapidamente decidiram o caminho: ministros, secretários de Estado, presidente de câmara, presidentes das juntas, todos se mostraram muito preocupados com a situação dos trabalhadores migrantes, todos se mostraram com muita vontade de agir contra as más condições de vida, todos se colocaram em frente das câmaras de TV e prometeram medidas enérgicas.
Como se até ali não soubessem da situação dos migrantes – com hábitos, culturas, standards diferentes, mas também com condições abaixo do que são os limiares mínimos aceitáveis numa Europa desenvolvida. Foram, aliás, os próprios empresários agrícolas quem, desde 2017 (pelo menos), chamou a atenção para a situação e procurou encontrar soluções.
Quanto à colheita, à economia local, aos efeitos para o futuro, aos empresários, aos próprios trabalhadores (que querem mesmo trabalhar e mandar dinheiro para as suas famílias), nada! Nenhuma medida, nenhuma palavra. Defender as explorações agrícolas no contexto atual não seria certamente popular! Defender os empresários (essa raça!) estava fora de questão! E se isso implicar prejudicar os trabalhadores e a região, são meros danos colaterais.
Papéis, telefonemas, mensagens, vídeos. Tudo foi enviado para os decisores, para demonstrar os efeitos que a cerca estava a ter e o que podiam fazer para amenizar os efeitos catastróficos para os frutos vermelhos.
A situação concreta de Odemira demonstrou que a ação política nada tem a ver com a defesa dos interesses das populações. São meros oportunistas!