Exmº Senhor
Diretor Geral do Património Cultural
Palácio Nacional da Ajuda 1349-021 Lisboa
Quase posso afirmar que nasci no Palácio Nacional de Sintra, pois embora tenha sido dado à luz na casa onde ainda hoje resido, na Parede, desde os mais remotos tempos que guardo recordação de que passei ali grandes temporadas. A razão é o facto de meu pai ter perdido o seu pai na idade de 3 anos e ter sido criado por um tio materno, o Engº Jorge de Cruz Reis, que foi em tempos da Srª D. Maria Pia nomeado almoxarife do Real Paço de Sintra (de que já seu pai, Feliciano José dos Reis, fora também almoxarife), continuando aí nas funções de conservador até atingir o limite de idade a 24.XII.1944. A minha avó paterna, Josefina Maria dos Reis — que enviuvou aos 30 anos de idade e ficou sem meios, pois o produto da venda da loja do meu avô, Bernardo Heitor Rodrigues Thomaz, apenas foi suficiente para pagar as suas dívidas — viveu o resto da vida com o irmão e a expensas deste, e é essa a razão porque na minha meninice passei largas temporadas no Paço.
Após a aposentação do meu tio-avô continuei a frequentar o Palácio, e lembro-me de brincar aí com a Ana Maria, filha do Dr. Gomes da Silva, o conservador que substituiu o meu tio avô. Enquanto aí houve funcionários do tempo do meu tio sempre continuei a entrar livremente no Palácio, com que mantinha uma profunda ligação afetiva e de que, sobretudo depois de me ter licenciado em História, comecei a apreciar tanto o encanto como a originalidade.
Durante o período em que fui diretor do Instituto de Estudos Orientais da Universidade Católica Portuguesa (2002-2012) organizava aos sábados conferências públicas, para que convidava frequentemente professores estrangeiros, que em seguida passavam entre nós o fim de semana, de cujo programa constava quase sempre uma visita a Sintra e ao seu Palácio. Recordo sobretudo a admiração de uma professora francesa, a Doutora Elisabeth Alès, que nos ministrou um seminário sobre “O Islão na China”, que me disse que conhecia bem a China e muitos países do Mundo Muçulmano, mas jamais vira um edifício semelhante e que jamais o esqueceria na vida!
Depois de me ter aposentado e retirado da vida académica em 2012 lembro-me de ter visitado pelo menos uma vez o Paço, para o mostrar a uns primos maternos, naturais de Goa (descendentes dos Távoras que escaparam ao Marquês de Pombal, por em Goa estarem demasiado longe para conspirarem contra D. José), que vieram passar um mês em Portugal para conhecerem a terra dos seus antepassados, há agora cerca de quatro ou cinco anos.
No passado domingo, tendo um colega francês, investigador aposentado da École Française d’Extrême Orient vindo passar três semanas em Portugal, decidi levá-lo a Sintra e mostrar-lhe o Palácio. Jamais pudera imaginar encontrá-lo no estado miserável em que o encontrei, como se tivesse sido pilhado por uma horda bárbara. Lamento, por isso, não me ter munido nem de um bloco de notas nem de uma máquina fotográfica para registar o que via — o que me obriga a falar de cor. No entanto, a minha antiga colega na Faculdade de Letras de Lisboa, Drª Matilde Pessoa de Figueiredo de Sousa Franco, que foi durante vários anos diretora do Palácio Nacional de Sintra, que contactei de imediato, declarou-se pronta a confirmar ou infirmar os pormenores em que eu, falando de memória após uma surpresa inesperada, seja eventualmente menos exato.
O primeiro choque sofri-o logo na Sala dos Cisnes: havia lá outrora uma grande mesa de jantar, que me recordo de ter visto posta para um banquete em honra da Rainha Isabel de Inglaterra, salvo erro em 1985; sobre ela havia recipientes de porcelana em forma de pato, peixe, boi, etc., que deixavam adivinhar o seu conteúdo aquando dos banquetes. Ultimamente tinham tirado a mesa grande a título de estorvar a circulação dos visitantes que, se as coisas prosseguirem pelo caminho por que vão, dentro em pouco irão lá só para ver tetos e paredes! Mas mesmo após ter sido retirada a mesa os recipientes de louça continuavam na sala em cima de aparadores, encostados às paredes.
Na minha juventude as visitas ao Palácio eram feitas em grupo, sob a guia de um funcionário, que ia mostrando e explicando as diferentes salas. Há já alguns anos, devido ao acréscimo do número de visitantes, a visita passara a ser livre; mas houvera o cuidado de afixar em cada sala um pequeno painel com explicações sobre a sala e sobre cada uma das peças que a recheava. Recentemente haviam sido ajuntadas fotografias de cada sala no tempo em que o Paço era habitado.
Pode imaginar-se qual foi o meu espanto e a minha revolta ao verificar que tudo desaparecera da Sala dos Cisnes: mesa, aparadores, recipientes zoomórficos de porcelana, retrato de D. Sebastião, painel explicativo do recheio que estava na sala e fotografia do aspeto que apresentava em tempos de D. Maria Pia. Restavam apenas as paredes, com os seus azulejos, e o teto. A sala, vazia, como se fora um rinque de patinagem.
Na Sala das Pegas, idem: só ficou o fogão de sala porque estava agarrado à parede, os móveis desapareceram! E eram tão belos os contadores hispano-árabes que lá havia…
Da Sala das Sereias desapareceram os três ou quatro contadores indo-portugueses que lá estavam ainda da última vez que lá fui; havia só uma espécie de aparador sobre o qual se acumulavam sem ordem nem estética, ali atirados para um canto, os recipientes de louça que antes estavam na Sala dos Cisnes!
Da antiga Casa de Trinchar, contígua ao quarto onde está a cama de D. Sebastião (que sobreviveu ao saque) — sala que no tempo em que o meu bisavô era almoxarife servia, se bem recordo do que ouvia dizer, de Sala de Jantar, onde nos dias comuns almoçavam os reis e o seu ajudante-de-campo com o almoxarife — desapareceu uma das duas tapeçarias de Bruxelas que lá havia, uma das colchas indianas do Bengala e os três ou quatro contadores e outros móveis indo-portugueses que lá estavam igualmente.
Da Sala das Galés (também conhecida por Sala do Fogo por em tempos lá ter lavrado um incêndio, que felizmente se não propagou ao resto do Paço) foi retirado praticamente todo o mobiliário, inclusive as vitrines em que se expunham louças iranianas e hispano-árabes, que estão agora dependuradas da parede, como na “Adega do Saloio”! E os quadros que havia nas paredes desapareceram.
Da Sala dos Brasões desapareceu todo o mobiliário, que se reduzia ultimamente a uma grande mesa de torcidos e tremidos, salvo erro em pau-santo, e várias cadeiras, mas fazia da sala uma sala; agora é uma espécie de rinque de patinagem, como a Sala dos Cisnes. Restam o teto e as paredes, que graças a Deus parecem suficientemente sólidas para que os bárbaros as consigam arrancar…
Como o amigo que eu acompanhava é investigador da École Française de Extrême-Orient, ao passar o quarto de D. Afonso VI (que escapou ileso) comecei a prepará-lo para ver uma das coisas mais notáveis do Paço: o pagode de marfim oferecido a D. João VI pela Cidade de Macau. por pouco me não vitimou uma apoplexia quando entrei na sala que estava literalmente vazia: nem pagode, nem jarrões, nem o biombo japonês que lá estava antes, nem coisas nenhuma: só as paredes! E como não tem azulejos nem teto pintado nem qualquer outra coisa que mereça atenção tornou-se como um buraco negro no meio do Paço.
Do Quarto de Hóspedes contíguo à Sala dos Árabes tinha desaparecido todo o mobiliário, que, se bem recordo, consistia essencialmente numa mobília de quarto em estilo D. José ou D. Maria. Na sala da Ala Manuelina, que fica por cima do que era na minha juventude a residência do conservador, também tinha desaparecido a maior parte do recheio, embora aí me falhe a memória para poder enumerar o que realmente falta. Embora tenha em minha casa o inventário do recheio de cada uma das divisões do Paço, feito pelo meu tio Jorge quando era almoxarife, ainda em dias da Srª D. Maria Pia (de que constam 1765 artigos) é inútil tentar suprir com ele as falhas da minha memória, pois data de começos do século XX, correspondendo portanto à época em que o Paço era ainda habitado, após o que, como não poderia deixar de ser, muitas peças foram retiradas ou substituídas por objetos provindos de outros Palácios Nacionais que pareceram quadrar bem ali.
As funcionárias informaram-me de que as coisas que foram retiradas — bem metade do recheio do Palácio — o foram por não ser o Paço o seu paradeiro original; que só o seria se o paço antes de ser paço tivesse sido oficina de marcenaria e olaria…
Durante a minha já longa vida, ou no exercício da minha atividade profissional (6 anos como oficial do nosso Exército e 41 como professor universitário) ou pelo mero prazer de conhecer e me ilustrar, tive ocasião de visitar inúmeros museus e palácios deste vasto mundo, e observei que nos mais deles quando uma peça era temporariamente retirada para figurar numa exposição, ficava no seu lugar a sua fotografia, com a indicação do lugar para que fora deslocada. Em Sintra tudo desapareceu sem deixar vestígios…
Creio que não seria exigir de mais que, pelo mínimo de cortesia a que o público tem direito, fosse deixada uma explicação do que se passou ali — para que quem por tal se interesse não tenha da andar a farejar pelo país o rasto das peças desaparecidas e a consultar regularmente nos próximos anos os catálogos das boas casas de Antiguidades da Europa e da América para verificar se não aparece à venda em algum leilão qualquer peça do recheio do que foi o Real Paço de Sintra.
Compreende-se que, por razões válidas, sejam trocados peças e artigos entre os vários Palácios Nacionais; mas não há nada que justifique o desaparecimento de mais de metade do recheio do Palácio da Vila. Nem nada que justifique que se faça dele o parente pobre dos palácios e edifícios públicos portugueses, pois as peças que refiro foram simplesmente retiradas, e não trocadas por outras, quedando apenas o seu lugar vazio.
Independentemente de tudo o mais, o que se passa ali é um verdadeiro atentado ao património histórico de Sintra, contra o paço real mais antigo do país e contra um dos edifícios mais originais da Península Ibérica senão da Europa toda; e uma grave ofensa para todos os sintrenses que prezam a beleza e o património da sua terra.
Fui informado pelas funcionárias de que o Palácio não é já administrado pelo Estado, mas por uma empresa concessionária — o que só torna mais grave o caso, já que se não deixa entrever razão para que meros locatários tomem decisões drásticas que os conservadores nomeados em Diário do Governo jamais ousaram tomar. Se eu tivesse arrendado mobilada a algum inquilino alguma das minhas casas e este fizesse metade do que fizeram em Sintra não hesitaria em intentar-lhe, sobre essa base, uma ação de despejo.
Seja como for, a situação impõe uma intervenção rápida e enérgica da parte dos poderes públicos. Sem embargo, creio que é importante despertar para o verdadeiro crime que foi cometido a consciência do público, pelo que tenciono, sem menos consideração por V. Exª nem desprimor pela sua intervenção no assunto, em que fervorosamente espero, publicar na imprensa periódica um ou mais artigos sobre o caso.
Agradecendo desde já a sua intervenção e em qualquer caso a sua atenção, pedindo ao mesmo tempo desculpa pelo tempo que lhe roubei, fazendo-o ler esta longa missiva — que, força me é reconhecê-lo, poderia quiçá ser mais breve — despeço-me de Vª Exª apresentando-lhe os meus mais respeitosos cumprimentos.
Luís Filipe Ferreira Reis Thomaz