Muita tinta correu na imprensa nacional a respeito dos cerca de 60 portugueses retidos no Peru, num contexto de clara instabilidade política e social. No entanto, pouco ou nada se falou sobre o conflito em questão e o que o originou. É esse o propósito deste texto e, para tal, é preciso recuarmos no tempo.
No início do século XIX, a vasta maioria dos países da América Latina tornou-se independente, incluindo o Peru. A maioria adotou o sistema presidencialista, à imagem do sistema adotado pelos Estados Unidos da América e o Peru não foi exceção. Ao contrário de Portugal, onde prevalece o sistema parlamentarista, o Peru adotou o presidencialismo, ou seja, um sistema em que o presidente, em vez do primeiro-ministro, detém o poder executivo e, no caso deste país, o Congresso, constituído por uma única câmara, que detém o poder legislativo. Note-se que tanto o presidente como a câmara legislativa, o Congresso, são eleitos diretamente pelos peruanos por um período fixo estipulado pela Constituição. Depois de ser eleito, o presidente escolhe os membros da sua equipa, os ministros, que ocuparão os diversos ministérios, enquanto o Congresso tem o dever de fiscalizar a sua atuação, podendo dirigir-lhes moções de censura ou de confiança. Deste modo, o Congresso pode, de certa forma, controlar a qualidade do poder executivo. Além disso, o Congresso ainda pode, em casos excecionais, decidir, por votação, a destituição (la vacancia) do presidente por, a título de exemplo, “permanente incapacidade moral”.
Por outro lado, para evitar o bloqueio da ação executiva com sucessivas moções de censura por parte do Congresso, o Presidente também tem os seus mecanismos de defesa, previstos no Artigo 134 da Constituição peruana de 1993, a mais recente: após duas moções de censura ao gabinete do executivo, o presidente pode dissolver o Congresso e convocar novas eleições legislativas para a escolha dos novos congressistas.
Com este enquadramento político, percebermos o que aconteceu no Peru torna-se, não só mais fácil, mas também mais interessante. Eleito a 28 de julho de 2021, o socialista Pedro Castillo, um professor do ensino primário, tornou-se presidente do Peru, ao ganhar as eleições presidenciais, na segunda volta, contra a sua adversária conservadora, Keiko Fujimori. O apelido soa-nos familiar, pois é justamente filha do antigo ditador peruano, Alberto Fujimori, que governou o país durante a década de 90. Para o nosso objetivo, analisar esta eleição polarizada não é relevante, mas sim o que aconteceu depois.
Após tomar posse como presidente, Pedro Castillo parecia não saber o que fazer com a vitória, pois, em cerca de treze meses de governo, já tinha feito mais de quarenta mudanças na sua equipa de ministros. Além das suas atitudes, o seu distanciamento dos meios de comunicação social também não permitiu ao cidadão comum entender as suas ações. Numa polémica entrevista ao jornalista da CNN, Fernando del Rincón, Castillo pareceu sugerir até que a Bolívia, um país sem costa marítima, deveria ter acesso ao mar à custa do Peru, deixando os peruanos claramente desconcertados. Depois de quase um ano no poder, o então presidente Castillo tinha, segundo um estudo do Instituto de Estudos Peruanos, uma taxa de aprovação de apenas 19%, enquanto a desaprovação ultrapassava os 70%.
Perante este cenário, o Congresso do Peru, dentro das suas funções, foi, ao longo de vários meses de desordem no seio do poder executivo, demitindo vários ministros da equipa de Castillo, da educação à saúde, passando pelo trabalho e os transportes. Notemos que o Congresso nunca votou uma moção de censura ao governo de Castillo, mas a membros específicos, nunca permitindo, por isso, abrir caminho, pela Constituição, à possibilidade de o presidente dissolver o Congresso.
Foi no dia 7 de dezembro de 2022 que o insólito aconteceu: o Congresso iria, pela terceira vez, debater a destituição do então presidente Pedro Castillo por “permanente incapacidade moral”, a qual só poderia ser aprovada por maioria.
A poucas horas desse debate, Castillo, numa explosiva mensagem ao país, anunciou a dissolução do Congresso e a instauração de um governo de exceção até haver novas eleições legislativas. Foi com enorme surpresa e preocupação que a sociedade peruana recebeu estas notícias: antes de poder ser destituído pelo Congresso, o presidente resolveu dissolvê-lo primeiro.
No entanto, assistimos à democracia a funcionar: os ministros de Castillo foram demitindo-se, um a um, distanciando-se da ação de Castillo, considerando que o seu golpe era inconstitucional, pois, sem as duas moções de censura do Congresso, o presidente nunca o poderia dissolver. A sessão do Congresso para a destituição do presidente teve lugar nesse mesmo dia, resultando na sua demissão da presidência do país, ao fim de ano e meio de governo. Assim, Castillo determinou o seu futuro ao agir inconstitucionalmente, acabando com o seu mandato num “autogolpe” de Estado.
Em seguida, a vice-presidente Dina Boluarte assumiu as funções da presidência, até hoje, tal como previsto na Constituição do país. Já Pedro Castillo foi detido pela polícia, acusado de rebelião.
Perante esta situação, muitos peruanos saíram às ruas, uns pedindo eleições antecipadas e o encerramento do Congresso e outros uma nova Constituição que impeça este tipo de convulsões políticas, através de uma assembleia constituinte. Além destes manifestantes, ainda há os que pedem o regresso de Pedro Castillo, considerando que o presidente democraticamente eleito foi a vítima neste processo. Foi no meio de todos estes manifestantes que se encontravam os cidadãos portugueses retidos.
Em resumo, ninguém poderia adivinhar que esta situação iria ocorrer, muito menos no espaço de um dia, nem mesmo aqueles que consideraram cá a ida dos portugueses ao Peru uma imprudência. Quanto à situação política no país, também nos podemos questionar sobre o seguinte: a ação do executivo, caracterizada pelas constantes mudanças de elementos, não mereceu qualquer voto de censura por parte do Congresso? Recordemos que se o tivesse feito duas vezes, teria dado poderes ao presidente para dissolver o Congresso legitimamente. Outra questão relacionada com o próprio executivo: o ex-presidente Pedro Castillo sabia, isto é, estava consciente de que estava a acabar com a sua própria presidência, ao dissolver ilegalmente o Congresso? Se estava, qual foi o objetivo? Se não estava, o que ou quem o levou a fazê-lo?
Pessoalmente, Pedro Castillo não só não soube lidar com a sua vitória presidencial, o que se refletiu nas incontáveis e erradas escolhas de ministros, como a sua inexperiência política não contribuiu para corrigir esses erros. Por outro lado, se o Congresso considerava o trabalho do presidente desmerecedor do título de presidente, por que razão não votou qualquer moção de censura? Ainda mais importante: se o Congresso podia destituir o presidente por “permanente incapacidade moral”, por que razão só o fez depois de um trágico ano e meio de governo? Foi preciso um autogolpe de Estado para que o destituíssem?
Embora as atenções se tenham virado para a atuação do presidente, é importante destacar igualmente a ação do Congresso, o qual goza de enorme poder, pois só pode ser dissolvido depois de ele próprio votar moções de censura contra o executivo. Se Pedro Castillo foi acusado de não estar à altura da presidência do Peru, questionamo-nos, neste contexto, se, no enquadramento dos seus deveres de fiscalização do trabalho do presidente, o Congresso esteve.
Independentemente das respostas a estas questões, a verdade é que os últimos acontecimentos políticos no Perú mostraram algumas fragilidades ao nível da articulação do poder executivo e legislativo, deixando em aberto possíveis reformas no país ao nível constitucional, no sentido de dar mais estabilidade governativa, pois cabe destacar que, nos últimos sete anos, o Peru teve seis presidentes, o que é muito, se tivermos em conta que um mandato presidencial completo dura cinco anos.