Se não fosse o nível da violência nas escolas ninguém teria hoje qualquer boa razão para ler coisas escritas por Almeida Garrett (1799-1854). A sua peça em três actos Frei Luís de Sousa parece aos espectadores durar duzentos anos; e ameaça durar pelo menos duzentos e cinquenta. Quanto ao seu semi-romance Viagens da minha terra é um livro feito para fazer brilhar exegetas, o que comparado com um bom romance é dizer de menos: mas, como observou um crítico contemporâneo, o que tem de quebradiço recompensa com a barateza.
Os versos de Garrett são pelo contrário quase todos horríveis. Garrett inventou o livro de poesia em português. Quando apareceu a imprensa, os próprios poetas ou terceiros começaram a publicar recolhas de versos com nomes genéricos; mais tarde outros poetas passaram a engordar ao longo da vida um mesmo livro a que foram dando sempre o mesmo título; e hoje quase todos os poetas nos surpreendem a intervalos regulares com livros de títulos diferentes. Garrett inaugurou em Portugal este terceiro costume.
O seu último livro, Folhas caídas, foi publicado um ano antes de morrer. Inclui, como quase todos os livros de poesia portuguesa, propostas a senhoras estrangeiras, poemas a várias flores, e a descrição de um fim-de-semana em Cascais. No meio das verduras notam-se com dificuldade certos versos esplêndidos. Três dos mais conhecidos são “Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma. / E eu n’alma – tenho a calma, / A calma . . . do jazigo.” O poema em que estes versos aparecem é contorcido. É um poema filosófico, que depende de distinções. Amar, sugere nele Garrett, não é o mesmo que querer.
Sem surpresa Garrett prefere o vale de lençóis ao Vale de Santarém. Declara porém que a senhora com quem passa os fins-de-semana lhe faz “medo e terror;” não gosta dela no sentido normal do termo. Garrett explica a situação: “Não te amo,” o título do poema que aparece depois algumas vezes no próprio poema, é a conclusão de um raciocínio, apresentado de trás para a frente. Na premissa menor Garrett esclarecerá que sente calma na alma. A premissa maior vem só no fim e assegura que quem não ama tem calma na alma. Esta premissa, que aguenta todo o raciocínio, é misteriosa. Porquê exactamente calma na alma?
A resposta, como em toda a poesia boa, é: porque rima. Uma rima é uma parecença entre barulhos; e para os poetas os raciocínios são geralmente como rimas. Garrett esforça-se por nos provar várias coisas, em especial que não pode gostar realmente da senhora a quem dedica o poema; mas a principal é que visto que a palavra ‘calma’ tem lá dentro a palavra ‘alma,’ só quem não ama, por exemplo ele, pode ter alma. Os poetas que neste momento preparam os seus próximos livros filosóficos poderiam com vantagem considerar os resultados do esforço.