A rapidez com que a polémica do serviço militar obrigatório encheu capas de jornais e as redes sociais, foi a mesma com que o tema desapareceu.

Assistimos a um périplo de discussões sobre a reintrodução do SMO, onde se opinou sobre tudo e o seu contrário, no entanto faltando quase sempre a substância. A superficialidade ficou-se pelo impacto da palavra “obrigatório”, esquecendo toda a envolvente complexidade do assunto.

O tema não ressurgiu por acaso. A Europa vive um conflito bélico, já não imaginável, num país não NATO, com o seu teatro de operações na Ucrânia. A guerra dura há mais de dois anos, somando já centenas de milhares de baixas, tendo gerado 5 milhões de deslocados dentro da própria Ucrânia e cerca de 7 milhões de refugiados. Ao mesmo tempo, a tensão no Médio Oriente continua a crescer desde o terrível ataque do Hamas no dia 7 de Outubro de 2013. No início de Abril, o ataque à embaixada Iraniana em Damasco, por parte das forças Israelitas (embora não assumido) deixou antever que algo sério poderia acontecer nos dias seguintes. O Irão, numa demonstração de força e num claro sinal ao mundo, e em particular para a região, ripostou com o lançamento de 60 toneladas de explosivos através de drones, mísseis de cruzeiro e mísseis balísticos. Paralelamente, na Ásia, continuamos a verificar o constante azedume nas relações entre China e Taiwan, e lá no meio, as contínuas provocações internacionais da Coreia do Norte.

Excluindo o conflito nos Balcãs, resultante da implosão da Jugoslávia, os Europeus habituaram-se a viver num clima de paz nunca antes visto na História. Sete décadas que permitiram um boom económico e, sobretudo, uma revolução nos costumes e valores das diferentes sociedades, sobretudo nos últimos 20 anos. Esta paz interna fez também os cidadãos europeus se esquecerem que a sua soberania não é apenas territorial. É igualmente económica, financeira, social, cultural e não só. Similarmente fez esquecer, ou negligenciar todos os restantes conflitos que decorrem actualmente no mundo, mas que têm, ou podem ter impacto na Europa.

No Norte de África e Médio Oriente há cerca de 45 conflictos armados. Sendo o mais actual o conflito entre Israel e o Hamas. Na Síria ainda decorre um conflito não-internacional, tal como acontece também no Sahara Ocidental, Líbia, Sudão, Níger, Mali, Tchad entre outros. Estes últimos, também conhecidos como os países do Sahel, vivem uma insurreição jiahdista há já mais de 20 anos, resultando num fluxo de migrantes para a Europa, onde muitos acabam no cemitério Mediterrânico.

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Avançando para o continente asiático, observamos um “cinturão” de conflitos que têm estado contidos sob pressão para não entrarem em erupção. O Irão e o Paquistão sofrem de questões internas na região sul, onde guerrilheiros independentistas do Baluchistão lutam entre os dois países. O Paquistão e a Índia disputam Kashmir desde 1947. Mesmo com o cessar-fogo assinado, têm sido registradas diversas violações desse mesmo acordo. Pouco conhecido é o conflito existente entre a Índia e a China nas regiões de Aksai Chin (norte dos Himalaias) e Arunachal Pradesh, na região oeste dos Himalaias.

Olhando para o cenário macro, a paz que se vive é extremamente volátil, estando talvez a viver o seu maior momento de fragilidade dos últimos 70 anos.

A soberania dos diferentes países europeus começa a defender-se fora do território europeu. A operação Atalanta, uma missão da União Europeia ao largo da Somália, tem como objectivo proteger os navios que atravessam o Golfo de Áden e a Bacia da Somália, onde circula mais de 75% do comércio internacional de petróleo. Já do lado Oeste Africano, Portugal tem participado na missão Iniciativa Mar Aberto, no Golfo da Guiné, com o objectivo de promover a cooperação e domínio da defesa com países da CPLP, em áreas como a segurança marítima e actividades científicas.

Portugal participa na operação Atalanta desde 2008, tendo já comandado a Força Naval da União Europeia por diversas vezes. Se em 2013 a Marinha Portuguesa comandou a missão com a fragata NRP Álvares Cabral como navio-almirante, das vezes seguintes comandou a bordo de navios da Armada Espanhola e Italiana.

Em Janeiro de 2024, a NATO iniciou o maior exercício conjunto de sempre. As manobras militares em grande escala, que durarão até Maio, envolverão cerca de 90.000 soldados da Aliança Atlântica, 50 navios de guerra, 80 aviões e 1.100 veículos de combate de todos os tipos. No exercício, batizado como “Steadfast Defender 2024”, participam militares dos 32 Estados-membros da organização. Portugal contribui para este exercício com 37 militares.

Estes dois exemplos, e muitos mais há para apresentar, são um sinal do actual estado das Forças Armadas Portuguesas. Propositadamente esquecidas nos orçamentos anuais, ao longo dos últimos 30 anos, as FFAA têm vindo a degradar-se a todos os níveis.

A queda do governo de António Costa, ao fim de 8 anos de contínuo esquecimento das FFAA, a implementação de uma polémica reforma da Estrutura Superior das Forças Armadas, um Ministério da Defesa abraços com a Justiça por diferentes casos de corrupção, a falta de efectivos, a tabela remuneratória estagnada, uma contínua desorçamentação, a falta de futuro e o aproximar do colapso total fez com que os representantes das Forças Armadas usassem da sua voz para alertar os Portugueses e o novo governo. E os militares, sem direito à greve, ameaçam manifestar-se nas ruas, perfeitamente dentro da lei.

E sim, o facto de Portugal ter um novo governo foi a oportunidade que os militares viram para falar. Este foi o verdadeiro motivo que trouxe o tema à tona, pois com o governo socialista os militares apenas obtiveram como resposta a igualdade de género e a linguagem inclusiva.

O cenário não poderia ser mais aterrador. Há décadas que diferentes Generais e Almirantes, sobretudo na reserva, têm vindo a alertar as mais altas entidades. A última carta aberta escrita ao Comandante Supremo das Forças Armadas é disso exemplo. Também o Grupo de Reflexão Estratégia Independente (GREI), que tem por finalidade a realização de estudos de carácter estratégico, económico e social sobre Portugal, publicou sobre o tema. Diversos analistas e jornalistas têm vindo a denunciar e a alertar para a degradação das Forças Armadas. No entanto, como o tema não é sexy e não capta votos, continua ignorado.

O futuro das Forças Armadas não passa apenas pela discussão do Serviço Militar Obrigatório. É fundamental compreender a conjuntura internacional, a arquitectura da Defesa Nacional de acordo com o conceito estratégico de defesa nacional, compreender o significado e implicações da “condição militar”, e obviamente, definir a capacidade operacional das Forças Armadas.

De que serve incorporar 30.000 jovens por ano se não há capacidade de fornecer fardamento, alimentar ou até transportar os militares? De acordo com as mais altas patentes militares, as FFAA “dispõem de um núcleo reduzido de meios com valor credível” e “o equipamento mais antigo, atualmente de reduzido valor operacional e técnico, mas ainda indispensável por não ter sido substituído, tem visto o seu ciclo de vida prolongado para além da racionalidade possível.”

Observando as condições financeiras, materiais e de recursos humanos, verifica-se que cada vez será mais difícil responder às actividades de prontidão para cumprir com os compromissos internacionais, sem falar dos compromissos nacionais.

O desafio que as Forças Armadas enfrentam é muito superior à questão financeira. Começa na questão demográfica, onde a natalidade tem vindo a cair drasticamente. Nos anos 80 esteve perto dos 200.000 nado-vivos/ano, em 2000 ficou-se nos 120.000 e em 2021 não chegou às 80.000 crianças. Os dados revelam que 83% dos jovens que optaram pelo ensino secundário geral prosseguiram os seus estudos para universidades ou politécnicos. Assim, com os números de hoje, sobram pouco mais de 13.000 jovens para o mercado de trabalho e para as FFAA. Num mercado onde escasseia a mão-de-obra, e olhando apenas para a actual tabela remuneratória dos militares, facilmente se compreende porque os jovens optam por outras profissões.

Em face dos desafios abrangentes discutidos, torna-se imperativo que Portugal repense seriamente o futuro das suas Forças Armadas. A segurança nacional, uma vez assegurada por um período prolongado de paz na Europa, está agora ameaçada por um cenário global volátil, marcado por conflitos persistentes e novas ameaças geopolíticas. Este contexto internacional exige uma revisão abrangente da capacidade operacional das nossas forças, não apenas para responder a compromissos internacionais, mas também para garantir a soberania nacional em todas as suas dimensões.

O desinvestimento prolongado nas Forças Armadas, evidenciado por orçamentos reduzidos e falta de modernização, coloca Portugal numa posição vulnerável num momento em que a estabilidade global está em declínio. Não basta discutir a reintrodução do Serviço Militar Obrigatório sem uma avaliação crítica das necessidades reais de defesa e sem investimento correspondente em infraestruturas, tecnologias e condições humanas. As questões de demografia, economia e capacidade logística são tão cruciais quanto as tácticas militares em si.

Portanto, é vital que os decisores políticos, juntamente com a sociedade civil, se comprometam com um diálogo construtivo e informado sobre o necessário reforço das Forças Armadas. Este diálogo deve transcender as discussões superficiais e avançar para estratégias concretas que alinhem as capacidades militares de Portugal com as suas obrigações e responsabilidades globais. Ignorar esta urgência não é apenas uma falha na previsão, é uma falha no cumprimento do dever para com os cidadãos portugueses e com a estabilidade internacional. O futuro das Forças Armadas e, por extensão, da segurança nacional depende de ações decisivas agora. As consequências de não agir são demasiado graves para serem negligenciadas.