O aborto livre até às dez semanas foi consagrado pela Lei nº 16/2007, que encarou esta problemática como um conflito de direitos e interesses entre a vontade da mulher grávida, por um lado, e a existência de uma nova vida humana dependente do corpo desta mulher, por outro.
Questão arrumada!
Eis a diferença entre o olhar jurídico-político, que visa anular a problematização, e o olhar próprio da ética, que exige um questionamento, um repensar, perante o que foi encarado pelo legislador em 2007 como um tolerar de um mal.
Aliás, quanto mais arrumado numa lei está este assunto, mais devemos activar a nossa reflexão pessoal e comunitária sobre como devemos agir. Só assim podemos continuar a considerar o aborto como um mal que devemos procurar evitar.
O assunto está arrumado! Estará? A verdade é que este argumento só funciona para um lado. Quem levantou novamente a questão foram alguns partidos políticos com a intenção de alargar o prazo das dez semanas e de facilitar e acelerar o processo de acesso à IVG.
O resultado de considerarmos o assunto arrumado e da falta de reflexão pessoal e comunitária sobre o aborto foi a quebra do vínculo que considerávamos indestrutível entre a gravidez e a vida humana em gestação.
O actual discurso, ao focar-se apenas no corpo e na autonomia da mulher, deixou de encarar o aborto como um conflito de direitos e interesses. Um dos lados foi emudecido. É como se interromper uma gravidez fosse só isso mesmo, como se não fosse acabar intencionalmente com uma vida humana.
Ser filho passa a ser uma condição que se adquire se a mulher desejar ser mãe. Se a mulher quer ser mãe, aquele embrião passa a ser considerado filho. Se uma mulher não quer ser mãe, o que existe, já não é um filho, é uma gravidez que deve ser interrompida.
O que se interrompe é a gravidez, diz a lei. Assunto arrumado!
Temos de nos recentrar. Sempre que se interrompe uma gravidez, retiramos uma vida a alguém.
A questão que aqui trago não é se devemos ou não mudar a lei, é muito mais séria e estruturante, porque tem implicações naquilo que sou, naquilo que quero ser.
Para tomarmos decisões livres temos de ter a fortaleza para encarar a realidade do que está em jogo, temos de ter tempo para reflectir, temos de ter a oportunidade de dialogar e de ser confrontados com opiniões diferentes e com caminhos alternativos, temos de sentir o peso de uma decisão desta importância e, sim, temos de evitar fugir ao sofrimento que advém do processo de decisão.
Os outros, nessas ocasiões, são todos chamados: cabe a cada um decidir se estende a mão ou se vira as costas, porque o assunto está arrumado.