Fechámos 2024 num mundo caracterizado por instabilidade geopolítica, sistemas democráticos em risco, desafios económicos significativos e preocupações com riscos crescentes nas vertentes ambiental, social e tecnológica. O que difere de há um ano para cá não são as variáveis em si, mas o facto de se terem agudizado.
Neste contexto de “tempestade perfeita” torna-se importante não deixarmos de manter uma postura otimista e lembrarmo-nos que é em períodos de crise que o ser humano demonstra as suas maiores capacidades de engenhosidade.
Há um raio de luz que teima em dispersar parte do panorama atual de nuvens negras e pesadas e que nós teimamos em ignorar: o PIB ou, mais precisamente, irmos além do Produto Interno Bruto.
O domínio do PIB
Colocado de uma forma simplista, o PIB foi criado em 1932 por Simon Kuznets (que viria a receber o Prémio Nobe da Economia em 1971), com o objectivo de medir o impacto da Grande Depressão no produto interno dos EUA. Contudo, Kuznets enfatizou que o PIB não era o indicador adequado para aferir o bem-estar das nações. Desde então, vários economistas de renome têm criticado a utilização do PIB para calcular o bem-estar (ou para aferir padrões de vida).
As limitações do PIB são muitas mas, entre as mais significativas, temos a incapacidade de capturar externalidades, sejam elas ambientais (perda de biodiversidade, degradação de ecosistemas, etc) ou sociais (desigualdades, satisfação de necessidades básicas, etc). Existe também a improbabilidade de medir os impactos da economia informal.
Contudo, e apesar das muitas críticas e limitações, o PIB continua a sua dominância como a norma global de referência para medir o desempenho dos países e das suas economias. Muitas são as razões para tal, mas talvez a mais importante seja que o facto de ser um conjunto contabilístico padronizado e transparente formalizado no “Sistema de Contas Nacionais”, desenvolvido com o apoio da ONU.
Para além do PIB
Revela-se importante a adoção de um indicador (ou um conjunto de indicadores) mais abrangentes e holísticos, que permitam a governos, organizações e sociedades tomar decisões mais informadas tendo em linha de conta não só variáveis associadas ao capital económico, mas também aos capitais natural e humano, verdadeiramente assentes num desenvolvimento sustentável de longo prazo e na melhoria da qualidade de vida e do bem-estar das sociedades (que, apesar de ter áreas de intersecção com o conceito de felicidade, não é a mesma coisa, acredito).
Entramos assim no domínio da criação de um índice “Além do PIB” ou “Índice de Bem-Estar” (o “Gross National Happiness Index” criado nos 70 do século passado é talvez o mais popularizado, mas há outros), que trás consigo o potencial de nos fazer encarar de forma distinta dois paradigmas: Valor e Crescimento.
Um foco quase exclusivo no capital económico implica que a criação de valor esteja intrinsecamente ligada a métricas monetárias. Os impactos deste tipo de criação de valor, quase sempre negativos, em áreas como biodiversidade e ecosistemas, desigualdade e ausência de necessidades básicas são neglicenciados. Existe assim uma relação implícita de causalidade mas perde-se a correlação entre criação de valor económico e destruição de valor natural e humano.
Decorrente da forma enviesada para como olhamos para Valor, confrontamo-nos com o paradigma do Crescimento. Sabemos que o PIB coloca o ênfase no crescimento económico e que este crescimento não entra em linha de conta com o facto de vivermos num sistema fechado, em que as barreiras planetárias já foram na sua maioria excedidas, e que por medirmos crescimentos médios, criamos desigualdades que tendemos a desconsiderar.
A discussão em torno do de-crescimento transforma-se quando a aproximamos de um ponto de vista de criação VS destruição de valor. Em termos mais abrangentes, poderemos continuar a apostar em crescimento holístico, ou em a-crescimento, apesar de medidas que preservem capitais natural e humano poderem resultar em de-crescimento no âmbito exclusivo do capital económico.
São formas diferentes de olhar para uma realidade complexa e difícil, e tentar destronar o PIB (algo que tornamos como certo e que, direta ou indiretamente, faz parte do nosso dia a dia) não se tem provado fácil. A melhor forma de o fazer, na minha opinião, será utilizar a mesma fórmula que tornou o PIB a medida de referência: através do envolvimento e apoio de uma instituição multilateral e multidisciplinar como a ONU, que dê o seu apoio e contribua para a operacionalização deste tipo de índice.
Porquê Portugal
Porquê este tema quando a iniciativa do Clube dos 52 é refletir sobre o Portugal da próxima década? Porque sinto que Portugal está unicamente posicionado para a criação e implementação de um Índice de Bem-Estar no seu território ou numa das suas regiões autónomas.
Passo a explicar porquê:
- “Momentum” político. Independentemente dos balanços de poder, Portugal, como membro da União Europeia, alinha-se com os objectivos europeus que priorizam inclusão social, sustentabilidade e qualidade de vida. Em paralelo, Portugal tem consistentemente mostrado interesse em políticas progressivas, tais como modernização da matriz energética, saúde mental e equidade social;
- Desafios económicos e sociais. Portugal continua a enfrentar desafios como desigualdades sociais, agravadas pelo fluxo de estrangeiros para o país, com um poder de compra superior ao português. As assimetrias da população urbana VS rural são também um desafio que requer solução;
- Comprovado interesse em sustentabilidade e bem-estar. Portugal é um exemplo de boas práticas na conversão da sua matriz energética de combustíveis fósseis para renováveis. O país tem vindo a ser reconhecido internacionalmente por níveis significativos de qualidade de vida e segurança, o que o torna num país apetecível para visitar e viver;
- Valores culturais e coesão social. Como outros países mediterrâneos, Portugal tem um forte cultura de comunidade e família, que coloca a ênfase em relações interpessoais e qualidade de vida. Muitas regiões do país não se despersonalizaram e mantêm formas tradicionais de viver, apesar de flexíveis novos modos de estar e viver;
- Disponibilidade de dados e escalabilidade. Portugal é um país com uma população pequena e disponibiliza uma boa cobertura digital, o que facilita a recolha de dados. Instituições como o Instituto Nacional de Estatística podem capitalizar nos dados que recolhem e utilizar desenvolvimentos tecnológicos como Inteligência Artificial para converter de forma eficiente e eficaz esses ativos em informação e conhecimento.
Tratar o bem-estar a nível nacional só muito dificilmente poderá ser considerado um tema novo e, na Europa, os países nórdicos têm estado na liderança desta agenda cada vez mais urgente. Acredito contudo que, pelo enumerado acima, Portugal tem o potencial para assumir um papel de liderança na Europa mediterrânea e mais além, com replicabilidade noutros países de pequenas e médias dimensões ou pequenos estados insulares, na implementação de um índice de bem-estar que lhe permitirá, em simultâneo, capitalizar as suas vantagens competitivas e solucionar os seus desafios.
Porque “navegar é preciso”, é tempo de içar as velas e abri-las aos ventos de mudança, à descoberta de soluções para um desenvolvimento sustentável a longo prazo e para a criação de um planeta mais saudável, de uma sociedade mais justa e de vidas com mais qualidade, mais dignas e sim, mais felizes também.
Miguel J. Martins é consultor do International Finance Corporation (IFC). Entre 2000 e 2019 trabalhou para a mesma instituição na área de Inovação e Sustentabilidade. Professor na Harvard University Graduate School of Design, passou também pela banca privada e é membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.