O mundo, como hoje o conhecemos, está a atravessar uma transformação frenética sem precedentes. Se por um lado assistimos a uma crescente tensão do mapa geopolítico, por outro é claro o impacto que a evolução tecnológica acelerada, e sobretudo os avanços exponenciais ao nível da Inteligência Artificial (IA), estão a ter não apenas nas economias, mas também na sociedade, no mercado de trabalho e no dia a dia de cada um de nós.

Este fenómeno traz, naturalmente, um leque de oportunidades, mas também um desafio acrescido para os países que querem dar um passo em frente no caminho para a digitalização, que implica terem a capacidade de conjugar qualificações e infraestruturas digitais adequados à rápida digitalização de profissionais, empresas e serviços públicos.

Interessa, por isso, saber o estado atual da digitalização da economia e da sociedade em Portugal, avaliar como nos comparamos com os restantes Estados-membros, perceber qual o impacto para o país de não atingirmos os objetivos que a Europa preconiza na estratégia da Década Digital, e, por último, convidar as principais forças políticas a partilhar a sua visão estratégica e as propostas para um país mais inteligente e mais competitivo, numa era cada vez mais digital.

Para isso, tomemos como base o segundo relatório sobre o Estado da Década Digital, publicado este mês pela Comissão Europeia, que define um conjunto de objetivos para a União Europeia em 2030, em termos de transformação digital da economia e da sociedade, e que nos ajuda a comparar a competitividade digital dos 27 Estados-Membros em quatro dimensões fundamentais – Competências Digitais, Infraestruturas Digitais, Digitalização de Empresas e Serviços Públicos Digitais – fornecendo informação valiosa para uma tomada de decisão mais informada e fundamentada.

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Mas terá Portugal capacidade de apanhar este comboio de alta velocidade?! Desde logo, saltam à vista duas dimensões particularmente preocupantes: Competências Digitais e Digitalização de Empresas. Vejamos cada uma delas.

Competências Digitais

Destaco, em primeiro lugar, o nível de competências digitais básicas registado na população portuguesa entre os 16 e os 74 anos, com apenas 55,97% dos indivíduos neste intervalo etário a deter de facto estas competências, ficando muito atrás de países como Espanha (66,18%) ou Irlanda (72,91%). Da mesma forma, obtivemos um crescimento residual da percentagem de especialistas em TIC no total de trabalhadores em Portugal (4,50% do total em 2023 contra 4,30% em 2022), sendo este resultado alinhado com a média europeia (4,80%). Por último, quando analisamos a percentagem de licenciados em TIC, constatamos que estamos no antepenúltima posição da Europa (2,5% do total de licenciados), apenas à frente da Itália e Chipre.

Ao olharmos para estes três indicadores, facilmente percebemos que ainda que Portugal se tenha tornado num hub de referência para startups, empresas tecnológicas e nómadas digitais, e da área das TIC ser bastante atrativa a nível salarial comparativamente a outros setores, a verdade é que Portugal revela ter ainda um longo caminho a percorrer. Desde logo terá de existir uma mudança estrutural do sistema educativo para permitir aos jovens – da primária à universidade – a oportunidade de adquirir competências digitais fundamentais para responderem às necessidades de um mercado de trabalho que está a evoluir a olhos vistos, nesta direção.

Da mesma forma, as empresas têm um papel importante no upskilling e reskilling da sua força de trabalho, tal como o Estado tem também de garantir as ferramentas necessárias à requalificação daqueles que procuram novas oportunidades de trabalho. Atrevo-me mesmo a dizer que uma atuação concertada entre setores público, privado e educativo só poderá trazer mais-valias para um ecossistema de aprendizagem contínua que incentive a aprendizagem em competências digitais avançadas.

Digitalização de Empresas

Do lado das empresas, existe igualmente uma urgente necessidade de transformação digital do tecido empresarial português, que hoje vai além da informatização de processos. Agora (e no futuro), falamos no valor acrescentado e efetivo que a inovação com novas tecnologias podem trazer para o sucesso e sustentabilidade dos negócios.

Vejamos alguns números: Portugal é o 14º país de 27 Estados-membros com mais empresas a utilizar ferramentas baseadas em IA (7,9% do total de empresas); somos também o 20.º país deste grupo onde mais empresas utilizam soluções de cloud (32,3% das empresas). Se compararmos com países como os do norte da Europa – que em muito são um exemplo a seguir – verificamos que a IA é utilizada em 15,2% e 15,1% das empresas na Dinamarca e Finlândia, respetivamente, ao mesmo tempo que a Finlândia, a Dinamarca e a Suécia são os países que, com grande distância da nossa realidade, utilizam mais soluções de cloud (73%, 66,2% e 66%, respetivamente).

Verifica-se, então, que Portugal se posiciona ainda muito abaixo no nível da competitividade digital das suas empresas em comparação com as economias de referências do espaço europeu. Outro dado que importa reter é o facto de 53,6% das pequenas e médias empresas (PMEs) em Portugal terem já alcançado, pelo menos, um nível de intensidade digital básico. Isto significa que atualmente mais de 700 mil empresas em Portugal (de um universo de 1,4 milhões de PMEs) não chegam sequer a conseguir os “mínimos olímpicos” da digitalização. Felizmente, o cenário tem vindo a melhorar, tendo a percentagem de PMEs com nível de intensidade digital básico aumentado 5% desde 2021 – uma tendência que acredito que se mantenha ascendente, acompanhada pela execução do eixo de Transição Digital do PRR.

Mas só este plano não chega. São precisos incentivos fiscais e programas de apoio à transformação digital, que incentivem as empresas a adotar estas novas tecnologias e, uma vez mais, a capacitar a sua força de trabalho – da liderança às equipas operacionais – a trabalhar com estas ferramentas.

Não obstante a estes desafios, há a salientar as oportunidades que Portugal soube aproveitar e que podem servir de “pontapé de saída” para serem uma referência internacional na digitalização. Falo particularmente de duas dimensões: Infraestruturas Digitais e Digitalização dos Serviços Públicos.

Infraestruturas Digitais

A este nível estamos destacadamente bem posicionados. Mantemo-nos como o 3.º país da União Europeia com maior cobertura de fibra (com 92,32% das habitações coberturas por esta tecnologia), ao mesmo tempo que somos o 8.º país com maior extensão de cobertura de rede fixa (94,17%). A par destes, e ainda que sejamos o 6.º território com maior extensão de cobertura 5G nas faixas de 3.4 e 3.8 GHz, esta percentagem fixa-se apenas nos 65,17% – se falarmos apenas da cobertura 5G, esta alcança um total de 98,09%.

É de salutar o esforço que o Estado e o setor privado têm tido na expansão da infraestrutura de 5G no país. Ainda assim, mantém-se a necessidade de alagar rapidamente o acesso a esta rede a todo o território – áreas rurais incluídas – para que a adoção generalizada do 5G se possa traduzir em maior inovação tecnológica e capacidade de suportar novos serviços digitais. Mas estamos no bom caminho.

Digitalização dos Serviços Públicos

Por fim, não posso deixar de olhar para o progresso que o setor público tem tido na modernização/digitalização de toda a “máquina administrativa”. Trago três indicadores muito interessantes facultados pelo relatório sobre o Estado da Década Digital: em primeiro lugar, e numa classificação de 0 a 100, os serviços públicos digitais para cidadãos totalizaram 81,54 pontos; em linha com os anteriores, os serviços públicos digitais para empresas obtiveram 81,94 pontos; por último, o acesso digital a registos de saúde, ligeiramente acima, alcançou 85,98 pontos. Para além de serem excelentes resultados per si, o sucesso do processo de digitalização dos serviços públicos portugueses torna-se ainda mais impressionante quando comparado com a média europeia que, em dois destes casos, se encontra abaixo: 79,44 pontos para os serviços públicos digitais para cidadãos; e 79,12 pontos no acesso digital a registos de saúde.

Há naturalmente espaço para melhorias. A evolução tecnológica é constante, e portanto a nossa capacidade de atualização também o deve ser. Nessa medida, será vital ao Estado ir além das recentes medidas de desburocratização, simplificação e homogeneização dos serviços ao cidadão e definir e implementar uma estratégia de atualização contínua dos serviços digitais, com especial foco na procura automação inteligentes dos serviços – da saúde às finanças – colocando a experiência do cidadão sempre no centro da equação, independentemente das suas competências digitais.

Estamos no caminho certo para alcançar bons resultados ao nível da digitalização do país, mas precisamos de capacidade (e vontade) para transformar a ambição em concretização. Num momento da história onde a competição entre mercados pela atração de novas empresas e investimentos, assim como o talento de referência são cada vez maiores, torna-se imperativo investir numa força de trabalho mais qualificada, dotada de novas competências digitais, e em empresas cada vez mais competitivas e orientadas para a inovação. O futuro de Portugal depende única e exclusivamente de um fator: a capacidade de execução.