Em Portugal, tal como no resto da Europa e grande parte do mundo, há consensos alargados sobre os processos necessários para que uma substância possa ser considerada um medicamento, e desta forma ser colocada ao serviço da saúde das populações. No entanto, a utilização de substâncias psicadélicas no âmbito da saúde levanta questões técnicas e éticas específicas que exigem particular atenção. Neste contexto, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) e, mais recentemente, um grupo multidisciplinar, promovido pela Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental e pela Fundação Champalimaud, e com contributos das Ordens dos Médicos, dos Farmacêuticos e dos Psicólogos Portugueses, assim como do próprio CNECV, viram necessidade de se manifestar publicamente sobre o assunto. Estes movimentos são uma resposta relativamente original a nível internacional, tanto que a revista Nature Medicine, uma publicação líder na área médica, decidiu publicar há já um ano a descrição dos primeiros passos do grupo multidisciplinar mencionado acima, e de que faço parte.

Sem surpresa, o parecer do CNECV e as recomendações do grupo multidisciplinar, tendem ao consenso na identificação de problemas existentes e nas suas possíveis soluções. Em primeiro lugar, é inequívoco que a administração de uma substância que altere o estado de consciência afeta a capacidade de decisão. Esse efeito é causa de particular preocupação em quem já esteja fragilizado por estar doente, e procure por isso tratamentos com essas substâncias. Em relação a este ponto, foi evidente o foco sobre a necessidade de procedimentos cuidadosos de consentimento informado, que permitam a tomada de decisão com base em informação correta, completa e equilibrada. Esse processo é visto como fundamental para maximizar a proteção das pessoas que optem por este tipo de tratamentos, em conjunto com o envolvimento de profissionais que sejam não só peritos neste tipo de tratamentos, mas que estejam também creditados pelas estruturas de regulação profissional já existentes, tais como as Ordens dos Médicos, dos Farmacêuticos e dos Psicólogos.

Uma segunda característica sublinhada como fundamental no pensamento sobre os tratamentos com substâncias psicadélicas é o facto destas estarem já disponíveis para consumo, mesmo que de forma ilícita, com intuitos diversos, incluindo recreativo, religioso e espiritual. O facto de haver essa experiência, e o uso destas substâncias ser visto habitualmente como tendo baixo risco, tem implicações na forma como a opinião pública lida com o seu uso clínico. O extraordinário interesse mediático que este assunto tem levantado demonstra-o bem. Há que considerar, no entanto, que outras substâncias ilícitas, tais como opióides e anfetaminas, podem ser prescritas como medicamentos, tendo já um papel clínico bem estabelecido na área da saúde. Nesse sentido, o consenso que emerge em relação ao uso clínico de psicadélicos é que ele se deve inserir na legislação e regulamentação existentes em relação aos medicamentos, e que os processos já bem estabelecidos para determinação de eficácia e segurança, assim como para a regulação da comercialização, publicidade e acesso aos medicamentos, se devem aplicar também aqui.

É claro que, na ausência da implementação de pareceres e recomendações, estes não passam de palavras vazias, sem impacto na vida das pessoas que se pretende ver protegidas. Os tratamentos com substâncias psicadélicas são, na sua maioria, apenas uma promessa, mas com particular relevo para quem, já hoje, se vê com poucas alternativas para recuperar a qualidade de vida que a doença roubou. São essas as pessoas a quem devemos o desenvolvimento de novas soluções e a sua implementação em condições de dignidade, segurança e equidade, uma vez que estejam desenvolvidas. Falhar qualquer um destes passos vai seguramente estimular a procura de soluções que poderão não funcionar, expor as pessoas a riscos que se podem prevenir, e limitar os tratamentos a quem, por sorte ou circunstância, a eles possam aceder. Não podemos por isso deixar de reforçar a investigação clínica de qualidade e assegurar o acesso equitativo à inovação com provas dadas.

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