No dia oito de novembro, arrancou na Casa da Música o Festival À Volta do Barroco. O programa incluía o Concerto em Ré menor BWV 1052 de Johann Sebastian Bach (1685-1750), uma obra barroca composta para cravo, que nesse concerto foi admiravelmente interpretada, no acordeão, por João Barradas acompanhado pela Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, sob a direção de Douglas Boyd. Foi um momento único em que o público assistiu a uma execução virtuosa e testemunhou uma interpretação com bastante maturidade por parte do acordeonista, que mereceu a ovação calorosa de uma sala cheia.

Antes disso, ouvimos a Sinfonia nº 44 de Joseph Haydn (1732-1809), conhecida pelo nome de Sinfonia Fúnebre porque, segundo um relato da época, Haydn terá manifestado a vontade de que um dos andamentos fosse tocado no seu próprio funeral. Como a Casa da Música anunciou no seu website, “A Sinfonia Fúnebre de Haydn inaugura o programa anunciando esta temática.” A temática da morte seria revisitada na segunda parte do concerto com a obra Libera me de João Domingos Bomtempo (1775-1842).

A respeito desta escolha, não se pode deixar de colocar uma crítica, uma vez que é de crítica que este artigo trata. Creio que esta forma de conceber o programa o esvaziou da sua componente científica e pedagógica, o que pode gerar uma certa confusão por parte de um público pouco conhecedor das épocas e dos estilos musicais. De facto, o programador avançou com uma temática específica para este concerto – a temática da morte – colocando em segundo plano a temática principal que deu o nome ao festival: “À VOLTA DO BARROCO”.

Convém esclarecer o público que ambas as obras representam estilos diferentes do Barroco, que tem como baliza temporal os anos à volta de 1600 até cerca de 1750. A Sinfonia nº 44 de Joseph Haydn (1732-1809) foi composta em 1772 e representa o estilo Clássico, cuja simplicidade e elegância está bem patente no seu Minueto. Infelizmente, à Orquestra Sinfónica faltou a elegância, por escolher tocar num tempo demasiado rápido sem aprimorar a articulação do tema. Pelo contrário, o Libera me foi interpretado de forma sublime, quer pelo Coro Casa da Música, quer pela Orquestra Sinfónica que “mergulhava” no repertório que lhe é mais apropriado, numa obra do estilo Romântico inspirada no Requiem de Mozart (composto em 1791) e na Sinfonia n.º 3 de Beethoven (composta em 1803). Conforme está indicado na partitura preservada na Biblioteca da Ajuda, a obra foi executada pela primeira vez em público a 24 de setembro de 1835 na Igreja de S. Vicente, em Lisboa, por ocasião do aniversário da morte de D. Pedro IV.

Mesmo se admitirmos que a Sinfonia Fúnebre de Haydn se enquadra cronologicamente “à volta do Barroco”, não deixa de ser confuso ver o Libera me de Bomtempo incluído neste programa por duas razões. A primeira: ainda que a obra tivesse sido composta na década anterior àquela indicada na partitura, como sugerem alguns estudos de musicologia, está cronologicamente muito afastada do Barroco. A segunda: Bomtempo não se inspirou em obras barrocas para a compor.

Em conclusão, a resposta à pergunta inicial “Quando é que Bomtempo esteve à volta do Barroco?” é: nunca. Sobre Bomtempo, é oportuno lembrar que no próximo ano comemora-se o 250.º aniversário do seu nascimento. Será uma boa ocasião para os programadores e organizadores de espetáculos consagrarem um lugar de destaque a este compositor e promoverem a sua música, no respeito da dimensão musicológica e estilística do seu repertório.

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