Dizia Karl Marx que o ponto de partida de toda a crítica era a crítica da Religião. Só assim se emancipava e disciplinava o espírito analítico para dissecar com liberdade a História, a Sociedade e a realidade do mundo. E para Marx, fundador do Materialismo Dialéctico com Friedrich Engels, seu amigo e mecenas, o grande crítico e coveiro da Religião era o seu patrício e contemporâneo Ludwig Feuerbach que, em 1841, publicara A Essência do Cristianismo.

N’A Essência do Cristianismo, Feuerbach contrapunha a abstração de Deus e da Religião à realidade do Homem e da Natureza. Deus era uma “representação fantasmagórica” do género humano, criada, inventada e imaginada pelos próprios homens. Entre a perspectiva teológica – que secundarizava o homem e priorizava Deus – e a perspectiva antropológica – que secundarizava Deus e privilegiava o homem –, Feuerbach optava pela visão antropológica: não fora Deus que criara o homem, fora o homem que criara Deus.

A crítica da Religião tinha começado em grande força com a guerra cultural dos Ilustrados do século XVIII contra a Igreja – com a Enciclopédia, com Voltaire, com Sade. E durante a Revolução Francesa, sobretudo no período do Terror, entre Setembro de 1793 e Setembro de 1794, a luta para erradicar a religião da Nação Cristianíssima tornar-se-ia particularmente feroz. A 5 de Novembro de 1793 abolia-se o calendário gregoriano e impunha-se todo um novo e pitoresco calendário: na revolucionária contagem do tempo, o nascimento de Cristo, que antes resgava as Eras, dava lugar ao advento da República Francesa e à consagração do seu inaugural primeiro dia. Foi também em Novembro de 93 que começaram a mudar-se nomes de localidades e a destruir igrejas ou a transformá-las em “templos da Ciência e da Razão”. Todas as igrejas parisienses foram fechadas e a catedral de Notre Dame, passada a “Templo da Razão”, albergou uma grande “festa cívica”.

Tornaram-se comuns as pantominas de cerimónias religiosas e a diversão teve aspectos sádicos: em Nantes, o famoso Carrier, que se notabilizou por afogar no Loire os presos políticos, monárquicos e católicos, instituiu os “casamentos republicanos”: um padre e uma freira eram amarrados a pedras e atirados, aos pares, para o fundo do rio. E na província monárquica e católica da Vendeia as tropas republicanas praticaram um dos primeiros genocídios de inspiração ideológica ou “cultural” da História europeia, matando 200.000 “inimigos da Razão” – homens, mulheres e crianças.

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Marx, que foi um pensador fundamental do século XIX e da modernidade, com contribuições importantes para a Sociologia e para a interpretação da História, como o conceito de Classe, ainda não era nascido quando da Revolução e dos seus desmandos; e nem a Revolução nem o Terror chegariam, no seu tempo, à Alemanha.

Marx, Engels e outros dos seus discípulos e seguidores quiseram fazer do Marxismo (e no século XX, depois da Revolução Bolchevique, do marxismo-leninismo) uma Ciência da História, que se desenvolveria de acordo com determinadas leis, dependentes das forças de produção. Assim, tal como o modo de produção feudal determinara um certo tipo de superestrutura político-social, o modo de produção capitalista determinaria outra. Entre estes dois tempos históricos ficava, para embaraço dos sábios, um longo interregno de séculos, a que alguns intelectuais orgânicos depois chamariam “Idade do Comércio”.

Onde o Comunismo venceu e se instalou o “socialismo real”, quis construir-se uma “Utopia sem Deus”, capaz de se sobrepor à Religião e de a substituir, trocando o “ópio do povo” por uma analgésica utopia, mais moderna e científica, que a violência tornaria particularmente eficaz. Por isso, na Rússia, depois do triunfo dos bolcheviques, a Igreja cristã ortodoxa foi perseguida, os templos fechados ou incendiados, os padres assassinados, os cristãos marginalizados. Os soviéticos anunciavam-se como arautos e portadores da Ciência, e era em nome da Ciência que se empenhavam em ridicularizar as crenças religiosas para melhor as poderem aniquilar. Logo nos primeiros anos da Revolução, deram-se ao trabalho e à despesa de enfiar camponeses em aviões e de os levar “ao céu”, para que vissem que ali não havia nada. Mais tarde, nos tempos de Kruschev, um poster muito difundido mostrava o Sputnik a bater na cabeça careca de Deus Pai, enquanto, numa reunião do Partido, o próprio Kruschev dizia, num assomo de lucidez científica, que “Gagarin voara no espaço e não vira lá Deus nenhum”.

E ainda que, na Segunda Guerra Mundial, durante a invasão alemã, o pragmático Estaline tivesse fechado temporariamente os olhos a alguma prática religiosa e até reprimido as actividades da “Liga dos Sem Deus”, a fim de apelar ao patriotismo popular, as perseguições religiosas e a violência contra as Igrejas nunca deixariam de definir os regimes comunistas. Em 1936, na Espanha da Frente Popular, foram detidos e fuzilados milhares de sacerdotes e religiosos, incluindo bispos. Na Europa de Leste, a perseguição à Igreja foi sistemática e brutal, e seria da renitente Polónia católica que partiria a resistência que iria contribuir para o fim do Comunismo.

Quer na teoria, quer na prática, o Marxismo e os marxistas-leninistas sempre combateram a Religião, o grande entrave à vitória da “Ciência” ou à consagração da sua Ideologia.

Então como e porque é que se sublinha a coincidência entre os ideais comunistas e os do Cristianismo? Talvez pela tentativa de transplantação compulsiva de alguns ideais cristãos, devidamente laicizados e expurgados de liberdade e transcendência, para os “paraísos na terra” comunistas; ou também porque, como muitas vezes acontece com interpretações do mundo e dos homens antagónicas, houvesse ocasionais inimigos, e até causas, comuns.

No século XIX, os comunistas e a Primeira Internacional criticavam e revoltavam-se contra o chamado capitalismo selvagem, o laissez-faire, laissez-passer que tiranizava as massas rurais que migravam para as grandes cidades, o capitalismo do trabalho sem horários, da exploração do trabalho infantil e das formas de escravatura branca, num tempo em que se abolia a escravatura negra. Essa indignação era partilhada por muitos cristãos e foi precisamente nessa época que o pensamento cristão-social deu os primeiros passos. E quer nos escritos de Dickens, de Tolstoi, de Victor Hugo ou de Zola, quer nas reflexões dos Papas Sociais, se condenavam o pecado e a culpa máxima das sociedades da opulência, construídas sobre as primeiras máquinas, mas também sobre a exploração sem freio de parte da população, garantida pela força do Estado Liberal.

A justa cólera perante a injustiça e o aviltamento da condição humana (simbolizados pelo Scrooge de Dickens e pela ordem social burguesa de Oitocentos e contra os quais Marx escreveu e lutou) foi também sentida pelos pensadores e activistas do Cristianismo Social; e, nos finais do século XIX, em França, a mesma cólera apareceria ligada ao nacionalismo identitário e anti-burguês, que mais tarde se cristalizaria nas correntes da chamada direita revolucionária. Afinal, as primeiras legislações sociais sobre horários e regulamentos do trabalho, seguros de saúde e pensões de velhice tinham surgido na Alemanha de Bismarck, que não era propriamente um homem de esquerda.

Uma das grandes forças do Marxismo foi o facto de a sua formulação utópica igualitária se aproximar em versão justicialista do Cristianismo das Bem-aventuranças do Sermão da Montanha; e uma das suas virtudes foi conseguir pressionar as sociedades burguesas no sentido de melhorarem a condição dos trabalhadores, para evitar a temida Revolução.

Só que, sempre que os nobres ideias e as justas lutas dos arautos da “Ciência” se traduziram em experiências de “socialismo real” – e na União Soviética houve mais de 70 anos de experimentalismo – não trouxeram nada que se assemelhasse a uma sociedade justa, igual e equilibrada. Antes, trouxeram os piores defeitos e pecados das religiões organizadas e uma oligarquia de zelotas iluminados que se entretinham a sujeitar o povo às suas experiências colectivas e colectivistas (o Holodomor ucraniano e a China do Grande Salto em Frente são disso exemplos paradigmáticos). E, no final, construíram sociedades geridas por nomenclaturas de burocratas privilegiados, em tudo iguais a qualquer oligarquia aristocrática ou burguesa, excepto na retórica do melhor dos mundos.

Um dos problemas de Marx e do marxismo foi que os seus discípulos, sobretudo quando vencedores, transformaram um pensamento analítico numa série de dogmas equivalentes aos das religiões reveladas. E aquilo que é compreensível numa religião que admite a transcendência da Revelação – e, por isso, o dogma –, é particularmente irracional numa ideologia que, mais que uma interpretação da realidade, sempre se quis impôr como uma verdadeira Ciência do Homem e da História, declaradamente fundada na Razão mas insusceptível de ser abalada pela contraprova dos factos.

Porque é que o zelo de grande parte dos discípulos e continuadores de Marx tende a fazer das suas teses e cânones de interpretação verdadeiros e indiscutíveis dogmas para-religiosos? Porque, aparentemente, a persistência da natureza humana, com a sua “mistura de trevas e brilho” e a sua continuada ânsia de transcendência, ora impede a morte das religiões, ora tende a transformar a mais “científica” das ideologias numa religião em fundamentalista e furiosa cruzada.

Talvez por isso, para os zelotas e os inquisidores que, munidos de novas “verdades científicas”, voltam hoje em força para retraçar o mundo a régua e esquadro, tornar a fazer do passado tábua rasa e refundar à força a humanidade num qualquer delírio para-humano, as igrejas em geral (e o Cristianismo em particular, com tudo o que representa e defende) continuem a ser o alvo a abater.