Permita-me o leitor começar pela explicação, porventura desnecessária, de que é falso o argumento de que as realidades de Portugal e da Noruega não podem ser comparadas, dada a abissal diferença de recursos que existe entre os dois países. Está longe de ser apenas isso, como estas linhas demonstrarão. Tenho, desde 2013, uma posição de professor a tempo inteiro naquela que é atualmente a quarta maior universidade pública do país. Aquilo que verdadeiramente nos distingue, e que justifica o título escolhido, é a organização e o respeito que o Governo tem pelos cidadãos. Até ao eclodir da pandemia, costumava alternar duas semanas na Noruega e duas em Portugal. Atualmente, tenho passado um mês em cada país. Esta última deslocação oferece-nos um bom exemplo da acusação que o título encerra.

Viajei para Oslo no passado dia 6 de janeiro, via Frankfurt, saindo de cá no voo que deveria partir pelas 06:20 horas da manhã. Deveria, mas não partiu, porque as baixas temperaturas da noite deram origem à formação de gelo nas asas. Foi o próprio piloto que veio ao terminal de embarque falar a todos os passageiros, para os informar de que iríamos sair atrasados porque o aeroporto do Porto não dispõe de meios para o descongelamento. Acrescentou que nunca na sua carreira tinha tido tal experiência e que a única solução seria esperar pelo nascer do dia, colocar o avião ao sol e esperar que o descongelamento acontecesse naturalmente. E foi isso mesmo o que aconteceu – embarcámos apenas pelas 08:30 horas, com mais de duas horas de atraso, e esperámos pacientemente ao sol, que entretanto nascera, até às 10 horas, quando finalmente pudemos levantar voo. Com quase quatro horas de atraso, perdi a ligação seguinte para Oslo, onde cheguei apenas alguns minutos depois da meia noite. Já nessa altura, a Noruega exigia aos passageiros que trouxessem um teste Covid-19 negativo à entrada, a que se acrescentava a exigência de realizar outro à chegada e ao cumprimento de uma quarentena de 10 dias. O teste realizado à chegada, gratuito, poderia ser substituído por outro realizado fora, desde que o resultado fosse apresentado nas 24 horas seguintes. Não foi preciso esperar pelo resultado no aeroporto, porque as autoridades sabiam como e onde contactar cada um dos passageiros.

Daremos agora um salto no tempo até hoje, 31 de janeiro, em que regresso a Portugal. Consultei naturalmente o site SNS24 antes da viagem, para saber o que deveria apresentar. Ainda à hora em que escrevo estas linhas, este site continua taxativamente a afirmar que os passageiros vindos de “países UE e do espaço Schengen não têm de apresentar teste à Covid-19 no momento da partida, serão apenas submetidos a controlo de temperatura à chegada ao aeroporto” O endereço da página é inteiramente geral, sem referência de data, fazendo parte da prevenção dos viajantes relativamente à Covid-19.

A viagem com a Lufthansa, conhecida pela excelente organização, não começou da forma habitual. Pela primeira vez desde há largos anos, não pude fazer o check-in online, tendo recebido da companhia a explicação de que o bilhete estava “sob controlo do aeroporto” e seria lá que teria que o realizar, “à moda antiga”. Suspeito agora porquê – a companhia, sem informação sobre as novas formalidades de entrada em Portugal, não sabia se teria autorização para realizar o voo e deve ter procurado esclarecimentos até à última hora. Ao embarcar, a informação recebida foi de que as autoridades portuguesas exigiam agora o preenchimento de um formulário eletrónico no portal “portugalcleanandsafe.pt”, que devolveria (como devolveu) um código QR para mostrar no controlo de passaportes. Após uma breve escala em Frankfurt, embarcámos para o Porto, onde chegámos no horário, pelas 11:25 horas da manhã.

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E aqui entramos verdadeiramente no desgoverno que o título proclama. Os funcionários do SEF pediam um teste Covid-19 que era agora exigido pelo Decreto-Lei (DL) nº 20/2021, que entrara em vigor pelas 00:00 horas deste próprio dia. Dezenas de pessoas, desconhecedoras de uma exigência que as informações já referidas no portal SNS24 continuam a ignorar, não dispunham de teste. Poderá imaginar-se a confusão criada, as discussões, até o desespero – em particular, de uma senhora que tinha viajado unicamente para participar no funeral da mãe, marcado para as 14 horas.

Não se surpreenderá também o leitor se lhe disser que não havia, quando desembarcámos, quem realizasse o teste no aeroporto, como o DL determina (“estavam a chegar”). A longa fila formada, se não criou mais riscos para a propagação da doença, certamente também não constitui um bom exemplo de como a combater.

Fila de passageiros a aguardar a chegada dos técnicos para realização do teste

Quando, finalmente, chegou a minha altura de realizar o teste, eram 15:30 horas, isto é, cerca de quatro horas depois de ter aterrado. Para agravar a situação, as autoridades exigem que ninguém saia do aeroporto antes de ser conhecido o resultado, que os técnicos do laboratório esclareceram demorar “pelo menos oito horas”, uma vez que não se trata de um teste rápido, mas antes de um teste PCR com captura de amostra em ambas as narinas e na garganta. Escusado será também dizer, que o responsável pelo laboratório, argumentando com a falta de informação atempada, recusou o pagamento dos 100 euros exigidos a cada passageiro através dos respetivos seguros de saúde, por não terem podido acautelar essa situação.

No momento em que escrevo estas linhas, mais de uma centena de passageiros aglomera-se no espaço que rodeia uma pequena cervejaria, no piso das partidas, que foi a solução “desenrascada” para os acantonar, enquanto esperarão ainda várias horas pelo resultado para saberem se poderão finalmente seguir para os 14 dias de confinamento. A extraordinária falta de organização e planeamento que este episódio evidencia constituem, por si só, a melhor explicação para o estado em que o nosso país se encontra.

Este parágrafo final é escrito no dia seguinte. O resultado chegou pelas 21:41 horas, o que me permitiu abandonar, por fim, o aeroporto cerca das 22 horas. Quanto ao código QR… ninguém pediu para o ver. Perdoe-me o leitor esta deselegância final, mas a melhor descrição para aquilo que me foi dado presenciar está nas palavras de um destacado membro do Governo, Ministro de Estado, quando há tempos se referiu despropositadamente nestes termos a uma reunião da Concertação Social: “É uma feira de gado”.