Duvido que James Carville tivesse consciência imediata da força da expressão que ficou como o legado mais conhecido da sua contribuição para a eleição de Bill Clinton em 1992, mas a verdade é que a frase “it’s the economy, stupid” conquistou página na Wikipédia e convida a uma interminável sucessão de “memes literários”, na qual se filia este título.

Costumo, por razões profissionais, dividir o meu tempo entre Portugal e a Noruega. Esta alternância de residências mostrou-me há muito que a realidade quotidiana dos dois países é profundamente diferente. O primeiro sinal dessa diferença surpreendeu-me – foi o riso aberto das pessoas durante a pausa para o almoço. Na universidade onde dou aulas, os docentes e os não docentes confraternizam regularmente e tratam-se indistintamente pelo nome próprio (forma de tratamento que é partilhada pelos estudantes, onde apenas os estrangeiros do Médio ou Extremo Oriente me chamam “Professor”). Não tome o leitor por exagero isto que aqui lhe digo – o riso é perfeitamente audível no meu gabinete, apesar de o espaço de convívio ser numa ala perpendicular do edifício. Tendo eu ampla experiência do ensino superior português, que inclui o cargo de vice-reitor da U. Porto no quadriénio de 2014-18, sei reconhecer esta diferença que rapidamente se evidencia entre os dois ambientes.

Seria ingenuidade limitar as explicações às riquezas nacionais. É certo que a razão entre a dívida pública e o produto interno bruto tem na Noruega um valor que é menos de um terço do correspondente a Portugal, mas é interessante assinalar que a dívida pública per capita tem quase o mesmo valor nos dois países (c. 30 mil dólares cá, c. 28 mil lá). Por outras palavras, a contribuição média que seria pedida a cada cidadão, se quiséssemos anular a dívida pública, era praticamente a mesma nos dois países. Dir-me-á o leitor que o importante é a riqueza do país. Mas, também aí, os dados surpreendem, já que a “riqueza líquida nacional” é semelhante em ambos os casos, representando, de acordo com a Wikipédia, 0,28% da riqueza líquida mundial. A maior diferença é no produto interno bruto, que na Noruega será 57% a 69% superior ao português, de acordo com os dados das Nações Unidas e do Banco Mundial para 2020. Por outras palavras, os Noruegueses são melhores do que nós a criar riqueza, mas essa diferença não representa um abismo intransponível (já nós somos seguramente melhores a esbanjá-la, mas disso falaremos adiante). Assim sendo, que razões poderão explicar as posições diametralmente opostas ocupadas pelos dois países naquilo que a OCDE designa como a “satisfação pessoal” dos cidadãos, onde a Noruega surge em 2.º lugar, enquanto Portugal surge em 38.º (antepenúltimo) lugar?

Poderíamos pensar que esta diferença se deve ao apreço que os Noruegueses manifestam pela separação entre a vida pessoal e a profissional, ao regular cumprimento de um horário de trabalho que totaliza 37,5 horas por semana (superior às 35 horas da função pública em Portugal), às evidências de bom funcionamento de uma larga gama de serviços públicos e privados, amplamente suportados em plataformas digitais, ou ainda a uma diversidade de razões que poderia aqui elencar, mas que, em segunda análise, se conclui estarem mais no lado das consequências do que das causas. Em boa verdade, se quisesse destacar apenas uma razão, diria que o alto índice de satisfação pessoal que encontro na Noruega se deve principalmente ao respeito de cada um pelos outros. O leitor benevolente que me acompanhou até este ponto poderá franzir o sobrolho, face à dúvida crescente que as minhas afirmações lhe terão causado. Atendendo a que um bom exemplo esclarece melhor que muitas explicações, abusarei da sua paciência dando-lhe, entre muitos outros em que poderia pensar, não um, mas dois exemplos que me parecem paradigmáticos.

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O primeiro diz respeito ao serviço de comboios entre o aeroporto de Oslo e a cidade de Kongsberg. Compro o bilhete no telemóvel antes de entrar e escolho uma carruagem destinada aos passageiros portadores de bilhete, onde o revisor, invariavelmente, não me questiona, porque assume que, se estou ali sentado, já tenho bilhete. Neste trajeto, que já percorri mais de uma centena de vezes, houve apenas uma vez um atraso de dois minutos (a viagem dura 1h43m). Em todas as outras, qualquer que tenha sido o horário ou as condições atmosféricas (a temperatura pode chegar aos -20º C no inverno), o comboio chegou ao destino rigorosamente à hora prevista.

O segundo exemplo toca-nos a todos. Justificando-se com a importância estratégica da TAP para o país, o Governo já gastou e ainda virá a gastar no futuro milhares de milhões de euros de dinheiros públicos com a empresa. Perdoem-me a irreverência da pergunta, mas… disseram “importância estratégica”? Podem por favor explicar? O que de mais parecido existirá na Noruega é a SAS, “companhia de bandeira” partilhada por três países – a Dinamarca, a Noruega e a Suécia. Para além desta existem outras, incluindo uma importante companhia privada de baixo custo com um serviço de razoável qualidade (a Norwegian). Até hoje, não consegui vislumbrar de que forma é que uma companhia de bandeira partilhada feriu os interesses estratégicos noruegueses. Quando penso na TAP, que alguns colegas ingleses associavam à expressão “Take Another Plane”, recordo-me sempre da piada que normalmente saía a seguir, relativa à belga SABENA (“Such A Bloody Experience Never Again”). Não me parece que o governo belga tenha lamentado a decisão de extinguir a empresa por falência em 2001, dando origem à atual Brussels Airlines. Do respeito que a TAP nos merece, podemos ajuizar pelo caso que agora lhe vou apresentar.

Quando as regras de confinamento ditaram alguns meses de teletrabalho, converti em vouchers os voos TAP que tinha agendados entre o Porto e Oslo. Usei o primeiro desses vouchers há algumas semanas, marcando a ida a 2 de agosto e o regresso a 27. Quando tentei efetuar o check-in para a viagem de ida, constatei que o código de reserva era inválido. Procurada a razão, descobri que a TAP decidiu há algum tempo cancelar a rota de Oslo até outubro. Nunca me avisou disso, apesar de dispor de todos os dados para o fazer (correio eletrónico e telemóvel). A tentativa de resolver o problema por telefone foi infrutífera, tanto pelo tempo (59 minutos) quanto pela má qualidade do atendimento. Tive que me deslocar pessoalmente ao aeroporto para encontrar uma solução, que a TAP irredutivelmente reduziu a duas alternativas – substituir o destino de Oslo pelo mais próximo para o qual tivessem ligação (sugeriram Copenhaga e até… Bruxelas!) ou a devolução do dinheiro. Assim mesmo, sem consideração pelo extraordinário desrespeito que representa a decisão de cancelar uma rota sem informar quem tinha comprado bilhete para esse destino.

Quando penso na leveza com que o ministro Pedro Nuno Santos decide manter a TAP que conhecemos, à custa de todos nós, tenho a desagradável sensação de que o discurso político que nos servem toma por garantida a indigência intelectual dos cidadãos. A debilidade da discussão pública sobre um assunto desta natureza ainda poderia compreender-se num regime ditatorial. Que isso suceda no nosso tempo, perante a inoperância de quem devia assegurar a oposição democrática e a discussão de decisões estratégicas deste tipo, só pode ser explicado por falta de respeito pelos Portugueses.