Na senda da comemoração dos 900 Anos de Portugal, considerámos oportuno destacar uma grande mulher de origem portuguesa do século XV, que revolucionou o seu tempo nos âmbitos cultural, social e espiritual, deixando-nos um legado autêntico até aos dias de hoje.
No desvanecer da Idade Média e com o inaugurar da Época Moderna acentuou-se no Ocidente cristão uma tendência cultural e civilizacional tardo medieval que inferiorizava o género feminino, enaltecendo a primazia do homem e o seu valor considerado superior. A narrativa do terceiro capítulo do Génesis levou a que uma teologia do pecado original culpabilizasse a fraqueza e fragilidade femininas por Deus ter expulsado o primeiro casal humano do paraíso e, assim, o pecado ter entrado na condição humana. Com efeito, a mulher começou a ser vista numa perspetiva obscura, tornando-se até alvo de mitos. Desde o século XV até ao despontar do Iluminismo, a Europa estimulou uma cultura masculinizante, afastando a mulher do âmbito social, como se se tratasse de uma criatura demoníaca perigosa. Por isso, as mulheres ficaram condicionadas ao âmbito privado, ao espaço doméstico e a outros lugares reservados.
É neste ambiente caraterizado por uma moral social que tornava a mulher muda, submissa e que lhe impunha um statu quo que surge o movimento “Querela das Mulheres”. Embora esta revolta tenha sido discreta, as mulheres que compunham este movimento pertenciam à elite nobiliárquica, tendo formação e cultura capaz de olhar criticamente a realidade e de perspetivar caminhos de realização pessoal, para além do matrimónio. Neste sentido, a vida monástica exprimiu-se como uma dessas veredas do desejo de liberdade e de inconformismo de muitas mulheres que não aceitavam o jugo imposto e a preponderância masculina.
Nesta transição para a Época Moderna, queremos salientar a importância e a ousadia de uma portuguesa de elite do século XV que rompeu com os padrões sociais e mentais ibéricos do seu tempo, construindo um espaço de protagonismo e de liberdade interior. Esta portuguesa chama-se D. Beatriz da Silva.
D. Beatriz nasceu por volta de 1437 na vila alentejana de Campo Maior. Os seus pais eram Rui Gomes da Silva, alcaide-mor de Campo Maior e de Ouguela, e D. Isabel de Meneses, filha de D. Pedro de Meneses, governador da cidade portuguesa de Ceuta, no Norte de África. Era uma das últimas filhas e, entre os seus muitos irmãos, conta-se o Beato Amadeu da Silva. Pertencia à linhagem portuguesa Teles de Meneses, que era uma das mais conhecidas naquela época. Por contágio familiar paterno, foi muito devota de Nossa Senhora da Conceição. A sua educação foi enriquecida com o contributo dos Franciscanos, por escolha materna.
Em 1447, saiu de Portugal para viver em Castela, na qualidade de donzela de D. Isabel, filha de D. Duarte, que iria contrair núpcias com o rei D. Juan II daquele reino. Quando D. Beatriz atingiu a idade núbil, tornou-se o centro das atenções, devido à sua aparência formosa e à sua personalidade cativante, suscitando disputas violentas entre duques e condes. Por isso, despontou o ciúme e a inveja na esposa do rei D. Juan II, a ponto de a transtornarem e de a motivarem a encerrar D. Beatriz num cofre durante três dias.
É neste ambiente de disputa e intriga cortesãs e neste contexto social específico em que conhece experiências de subjugação e violência sobre mulheres em situação matrimonial, que D. Beatriz decide fazer voto de virgindade e abandonar a corte. Com catorze anos de idade, passa a viver como consagrada no Mosteiro de São Domingos, o Real, em Toledo, com a comunidade de monjas Dominicanas, em regime de semirreclusão. Aqui, dedica-se à oração, à solidariedade e a ações de mecenato. Rapidamente ganha fama de santidade e é reconhecida como modelo de vida espiritual. Este eco suscita o interesse da rainha D. Isabel, a Católica, que a visita e apoia o seu desejo de criar uma Ordem inteiramente dedicada ao serviço, à contemplação e à celebração do mistério de Maria em sua Conceição Imaculada.
Santa Beatriz da Silva, retrato de José Luís Castrillo
D. Beatriz idealiza uma nova comunidade monástica tendo por modelo Maria Imaculada, que concebera o Filho de Deus sem o pecado original e que simboliza a mulher plenamente livre e realizada, totalmente disponível à vontade de Deus e ao serviço do seu Reino. Então, planeia a constituição de um mosteiro que fará nascer uma Ordem feminina autónoma nos âmbitos litúrgico, espiritual, organizacional e jurídico, tornando-se pioneira, dado que as fundações monásticas femininas dependiam das regras e ordens masculinas.
Em 1484, a rainha D. Isabel, a Católica, deu um contributo generoso a esta fundação, concedendo-lhe parte dos edifícios dos Palácios de Galiana e a igreja de Santa Fé, onde D. Beatriz se instalou com doze companheiras.
A 30 de abril de 1489, o Papa Inocêncio VIII aprovou a Ordem da Imaculada Conceição sob a Regra de Cister através da Bula Inter universa, de modo a cumprir as normas do IV Concílio de Latrão, que proibira a fundação de novas Ordens sob Regras próprias. Só vinte e dois anos mais tarde, a Ordem conseguiria uma Regra própria, através da Bula Ad statum prosperum, emitida a 17 de setembro pelo Papa Júlio II, reconhecendo, assim, uma nova identidade carismática, filiada na herança espiritual de S. Francisco de Assis.
A Ordem conheceu o seu auge de expansão nos séculos XVI e XVII, em que fundou cerca de uma centena de mosteiros pela Europa e pela América latina, sendo a primeira Ordem feminina acolhida por este continente.
Portugal recebeu-a em 1608 com a fundação do Convento de Nossa Senhora da Conceição em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira dos Açores. No mesmo século e no seguinte, fundaram-se mais doze: dois em Braga; dois nos Açores (Horta e Ponta Delgada); dois em Lisboa (Carnide e Arroios); em Pontével (Cartaxo); em Aveiro; em Chaves; em Loulé (Algarve); em Arrifana de Sousa (Penafiel); e em Guimarães.
Depois das alterações que sofreram as ordens monásticas a partir do Iluminismo e com a perseguição política e ideológica ocorrida durante o século XIX e o início do século XX, marcado pelo laicismo e pelo liberalismo, tem-se assistido a um novo florescimento dos mosteiros da Ordem da Imaculada Conceição nas últimas décadas.
Em Portugal, a Ordem voltou em 1942, com a fundação do Mosteiro da Imaculada Conceição em Campo Maior, terra de origem de D. Beatriz da Silva. Perante o aumento da comunidade, em 1979 foi fundado o Mosteiro de Santa Beatriz da Silva, em Viseu. No ano 2013, quatro Irmãs da comunidade de Viseu fundaram o terceiro mosteiro concepcionista – o Mosteiro do Sagrado Coração de Jesus –, em Lisboa. Numa ótica global, atualmente, a Ordem está presente na Europa, em África, na Ásia e na América Latina.
Beatriz da Silva foi uma mulher forte, diligente, culta e revelou-se um rosto de santidade durante a sua vida. O seu processo de canonização foi iniciado no século XVII e a Igreja reconheceu o seu grau máximo de santidade no século XX, tendo sido canonizada no dia 3 de outubro de 1976 pelo Papa Paulo VI.
Assim, Santa Beatriz da Silva, num país de muitos santos homens, foi a primeira santa de nacionalidade portuguesa a ser reconhecida pela Igreja.
Bibliografia
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]