A afirmação do estatuto de santidade e o seu reconhecimento pela autoridade eclesiástica assumem contornos e funcionalidades simbólicas, sociais e mesmo políticas que ultrapassam a estrita esfera espiritual e o critério de legitimação de um dado modelo de exemplaridade cristã creditada por critérios evangélicos canonicamente estabelecidos.

São Teotónio, amigo de D. Afonso Henriques

O investimento na proclamação oficial de uma dada personalidade como tendo tido uma vida santa de acordo com os parâmetros cristãos serve vários fins. Primeiro, os fins canónicos e explícitos de quem é declarado santo: tornar-se modelo inspirador de vida e representar um papel intercessor diante da corte divina em favor dos humanos. Depois, vêm os fins implícitos e não declarados que remetem para funcionalidades de legitimação de instituições, de movimentos, de comunidades autónomas, de nações que desejam confirmar e reforçar identidades distintivas com caução sustentada na esfera transcendente.

São Teotónio, contemporâneo e amigo do Fundador da Nação Portuguesa, D. Afonso Henriques, é uma figura que ganha, desde o seu tempo, reconhecimento de santidade popular e eclesiástica, mas cuja função enquanto primeiro santo dos primórdios fundacionais do Reino de Portugal será muito valorizada nos processos de construção da memória histórica, adquirindo funcionalidades simbólicas de grande significado.

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De tal modo são ampliados pela posteridade o valor e a importância espiritual e até política da sua vida que outras figuras mais relevantes do seu tempo ficaram subalternizadas na sombra do esquecimento historiológico. Falar de São Teotónio implica assumir a tarefa de tentar descortinar aquilo que teria sido a sua biografia histórica e distingui-la daquela que podemos chamar a sua biografia hagiográfica, nacionalizante e política, servindo o ideário de afirmação da nacionalidade e da identidade portuguesas com fundamentação de natureza sobrenatural.

Importa, pois, perceber que, na interpretação das fontes, o fito que presidia à construção das narrativas históricas era apologético, ético, espiritual e político, visando torná-las funcionais para efeito de exemplaridade e para o estabelecimento de uma imagem ideal das origens. Aliás, estas narrativas de legitimação, de horizonte providencialista, contribuíram para erguer aquilo que chamamos a construção do mito das origens da nacionalidade. Inseriam-se numa corrente europeia com denominadores comuns, que procurou legitimar a afirmação dos reinos e das nacionalidades, descrevendo de forma idealizada o dealbar das origens com tónus transcendente.

São Teotónio, numa pintura de Nuno Gonçalves

A fundação do reino autónomo de Portugal por D. Afonso Henriques não se deveu apenas à sua perícia militar e à da nobreza que juntou meios materiais e milícias armadas para formar um exército muitas vezes vencedor. Deveu-se também a uma estratégia de diplomacia e de investimentos no mercado simbólico, para o que a Igreja e a fé do povo muito contribuíram. De facto, o primeiro Rei de Portugal contou com qualificados assessores, nomeadamente eclesiásticos. Aquele que foi mais relevado na memória histórica posterior foi São Teotónio, apesar da sua função ter sido mais moral e espiritual e menos política, propriamente falando. No plano político e diplomático, especialmente nas relações com a autoridade internacional da época, a Santa Sé, D. João Peculiar teve o papel preponderante, apesar de a História o ter destacado pouco. Este importante e politicamente empenhado arcebispo de Braga acabou por ser secundarizado pela visibilidade e pelo significado atribuído pela memória escrita e apologética a São Teotónio. São Teotónio foi, de facto, promovido e apoiado por D. João Peculiar, que reconheceu, desde logo, a sua grande qualidade espiritual e a capacidade para assumir funções eclesiásticas relevantes. Aliás, os talentos de São Teotónio cedo foram notados e a sua formação foi promovida sob os auspícios de grandes figuras e instituições eclesiásticas do seu tempo.

Segundo a tradição, São Teotónio teria nascido na terra minhota de Ganfei, pertencente ao concelho de Valença, que sediava um importante convento e igreja beneditina, onde foi batizado e recebeu os primeiros rudimentos da espiritualidade cristã, juntamente com a aprendizagem das primeiras letras, até aos 10 anos. Teve, depois, o importante patrocínio do bispo de Coimbra, seu tio paterno, D. Crescêncio, que promoveu a sua formação em ordem a uma carreira eclesiástica promissora. Com a morte do seu tio, transferiu-se para a cidade de Viseu, onde se ordenou sacerdote com grande ardor pastoral, revelando desde cedo, na sua missão pastoral, o desejo de seguir uma via ascética de aperfeiçoamento espiritual e de dedicação ao ideal de evangelização. D. Gonçalo, sucessor do seu tio Crescêncio à frente do bispado de Coimbra, nomeou-o, entretanto, prior da Sé de Viseu, que então dependia do bispado de Coimbra.

O apelo da Terra Santa

Em ambiente de Cristandade, no coração da Idade Média, animado pelo espírito de cruzada e de peregrinação, o apelo da Terra Santa atraía tanto nobres guerreiros, como homens espirituais com desejo de percorrer os caminhos do fundador do Cristianismo e de experimentar uma maior intimidade com Deus na terra considerada santa para os cristãos, como era também para os fiéis das outras duas religiões do livro. Teotónio, movido pelo ideário de peregrinação e de ascese, também foi atraído pelo desejo de seguir a via peregrinante em direção a Jerusalém, que, no imaginário medieval, era o centro da Terra e, por excelência, da geografia do sagrado cristão, onde o caminho ascético de procura de maior conversão interior se consumaria mais plenamente. São Teotónio abandona, em nome deste ideal, o priorado da Sé em favor do seu amigo Honório e arrisca uma viagem à Terra Santa com trajes de peregrino, associando-se ao grande movimento medieval europeu de peregrinação aos lugares santos.

As suas hagiografias fazem-no um homem muito desprendido dos cargos eclesiásticos, mas sempre instado a aceitá-los. Por isso, no regresso, acaba por voltar a assumir as funções de prior da Sé de Viseu, dedicando-se intensamente àquilo que configura o modelo de sacerdote santo: extraordinária dedicação ao múnus de pregação da palavra de Deus e atenção socio-caritativa aos mais necessitados, em plena sintonia com o movimento europeu que preconizava um novo modelo de padre, à luz da reforma gregoriana e canonical.

Mas, novamente, cede ao apelo de regressar à Terra Santa e à procura de uma vida mais contemplativa. Nesta segunda peregrinação, contacta de perto com os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, que teriam ganhado grande apreço pelas qualidades deste sacerdote lusitano, querendo mesmo fazê-lo seu superior. Não teria anuído a esta intimação, antes teria regressado a Portugal, mas já imbuído do ideal monástico vivido pelos Cónegos seguidores da Regra do Bispo de Hipona.

Nas viagens de Teotónio à Terra Santa e no contacto com esta experiência monástica canonical se pode entrever as origens daquela que pode ser considerada a instituição religiosa e cultural também fundadora da nacionalidade portuguesa: o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, assente na regra e no modelo de vida dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. Com efeito, no regresso da sua segunda viagem de peregrinação, São Teotónio é convidado pelo arcediago D. Telo e pelo bispo de Coimbra a instalar, em Coimbra, uma nova congregação/comunidade de Cónegos Regulares de Santo Agostinho, que marcará decisivamente a cultura portuguesa e o apoio espiritual à monarquia, tão decisivo para a sua estruturação enquanto poder organizado e reconhecido como para a afirmação de uma identidade nacional distinta dos reinos vizinhos de Leão e Castela.

O Mosteiro de Santa Cruz

O mosteiro é instalado com o patrocínio de Afonso Henriques, sob a direção de São Teotónio, nos arredores da cidade coimbrã, a 28 de junho de 1131. A comunidade monástica, fundada sob a invocação de Santa Cruz (Ordo Canonicorum Regularium Sanctae Crucis), começou a funcionar com vida religiosa regular a 25 de fevereiro do ano seguinte, com 72 religiosos consagrados sob a direção do primeiro prior eleito, Teotónio. É destacada, na espiritualidade de São Teotónio e na dos seus Cónegos de Santa Cruz, uma atenção espiritual à devoção a Nossa Senhora, o que tornará este mosteiro um centro importante para compreender a história da irradiação da espiritualidade mariana em Portugal.

Fachada da Igreja de Santa Cruz, em Coimbra

A primeira dinastia portuguesa, a começar pelo seu fundador Afonso I, cumulou este mosteiro de abundantes privilégios e bens, por ter percebido, desde logo, a importância que representaria garantir apoio a uma instituição que ofereceria um suporte espiritual, cultural e até mesmo no plano da formação de quadros para o reino que se queria estruturar com uma autonomia que perdurasse.

Importa acentuar que esta fundação monástica deve inscrever-se no ideário de renovação espiritual da Cristandade que tanto Telo, como Teotónio incarnavam. Este desejo de reforma, que marcou a transição da Alta para a Baixa Idade Média, resultou da consciência gritante da corrupção e do afrouxamento espiritual que tinham afetado largas camadas da hierarquia eclesiástica, que geraram movimentos críticos de descontentamento, por vezes derivando em correntes heréticas e em propostas utópicas de transformação social e eclesial.

As suas viagens à Terra Santa, passando pelo sul de França, permitiram conhecer de perto os ventos de renovação promovidos pela reforma de Cluny e pela reforma gregoriana da Igreja. Esta reforma eclesial, inspirada no modelo monástico de que o Papa Gregório VII, antigo monge da regra beneditina, era herdeiro, gerou uma corrente em toda a Cristandade que levou, por um lado, à procura da reforma da vida do clero e dos cabidos canonicais adscritos às sés, procurando imprimir-lhe ritmos de vida mais exigentes, à luz dos modelos de vida monástica, e, por outro, mobilizou para uma dedicação pastoral mais intensa guiada pelo escopo de conversão da vida secular a uma vida cristã mais santa. A opção dos Regrantes dos séculos xi e xii pela Regra Agostiniana não pode ser desligada, portanto, do renascimento das urbes e das redes de comércio, que fazia concentrar nos novos aglomerados citadinos populações mais numerosas, as quais interpelavam a uma ação espiritual mais intensa pela palavra e pelo exemplo.

Espiritual por excelência

São Teotónio é descrito pelos textos hagiográficos e pelas crónicas de Santa Cruz como um homem espiritual por excelência: homem de oração intensa, amigo dos pobres e humildes, austero na vida, conciliador na sociedade e operador de ações prodigiosas. A sua vida evoca bem a tensão entre dois apelos que as reformas do clero em concurso implicavam e, por vezes, também impunham dificuldades da gestão de opções; ou seja, o apelo da vida contemplativa e a exigência ou obrigação de uma vida ativa de pregação e serviço aos mais pobres, interrompendo um recolhimento de natureza monástica. Se a reforma gregoriana valorizava uma gestão equilibrada do atendimento a estes dois apelos, que repartisse a vida do clero entre a contemplação, o cuidado da liturgia e a ação evangelizadora, o modelo de Cluny acabava por sobrevalorizar a contemplação em detrimento da ação, em que se investia mais nos ritos litúrgicos com solenidade e nos ritmos de oração e menos numa vida de ação pastoral.

Do ponto de vista político, são estabelecidas ligações íntimas entre o primeiro prior de Santa Cruz e as ações políticas e militares bem-sucedidas de D. Afonso Henriques, que lhe pedia conselho e apoio espiritual. Ao poder do seu apoio espiritual, através da oração e do conselho conveniente, foram atribuídas importantes vitórias da reconquista cristã dos territórios de mouros operadas por Afonso Henriques, nomeadamente a estratégia de conquista de Santarém. É também imputado a São Teotónio um papel no aconselhamento em favor de uma política de tolerância e integração dos cristãos moçárabes nas povoações conquistadas aos mouros. Relatados são os casos das incursões militares de Afonso Henriques à região da Andaluzia, onde fez cativos muitos mouros, com moçárabes à mistura.

A experiência internacional de Teotónio, advinda das suas viagens de peregrinação, permitia-lhe distinguir facilmente fiéis islâmicos de fiéis cristãos inculturados sob domínio muçulmano. A distinção foi tornada patente junto do rei, que, por conselho deste cónego-monge, os libertou e lhes deu cidadania cristã.

A morte de São Teotónio, a 18 de fevereiro de 1162, é descrita de forma prodigiosa e mística. Como acontece com descrições semelhantes de homens eminentes pela sua santidade e outras qualidades excecionais, no momento da morte de Teotónio vê-se um globo luminoso a descer e a subir sobre o claustro do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, abundando narrações de milagres e prodígios, atribuídos, depois, ao poder intercessor de Teotónio, que o povo rapidamente considerou santo. A fama de santidade foi tal que a sua canonização pela autoridade eclesiástica aconteceu logo no ano seguinte. Por iniciativa do arcebispo de Braga, D. João Peculiar, reuniram-se os bispos do reino e, usando do poder que tinham então os metropolitas, reconheceram o grau de santidade em Teotónio, canonização que veio a ser confirmada pela Igreja Universal pela mão de Alexandre III.

A vida de São Teotónio foi revisitada em várias crónicas e histórias, muitas delas produzidas no percurso de feitura da história e da valorização da importância do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. O prestígio da sua figura e da sua santidade é-lhe dado também pela sua eleição para patrono de importantes cidades portuguesas. Este santo fundador do Reino de Portugal tornou-se padroeiro de Viana do Castelo, de Viseu e de Coimbra. Além de outros significados patentes na construção da memória histórica da vida e ação deste santo fundador de Portugal, São Teotónio representou, no processo de afirmação da nacionalidade portuguesa, a prototípica figura religiosa intermedial que operou a articulação entre o plano humano de criação de um novo reino autónomo e o plano transcendente, em que se procurava encontrar a bênção e a legitimação divinas para dar sentido sobrenatural ao empreendimento desta edificação terrena que era o novo Reino de Portugal.