Vivemos uma era em que a Inteligência Artificial e as ferramentas digitais são apresentadas como o futuro inevitável da Medicina. O discurso é sedutor: diagnósticos mais rápidos, doentes monitorizados em tempo real e eficiência económica. Contudo, por trás desta promessa tecnológica, esconde-se uma realidade menos brilhante, onde a equidade e a eficiência ainda são palavras vazias para milhares de doentes.

Vamos a factos na era da Medicina Baseada Evidência. Um estudo recente, que analisou 54 revisões sistemáticas sobre saúde digital, revela um paradoxo interessante. A tecnologia funciona: 75,9% dos estudos comprovam que as ferramentas digitais melhoram a efetividade clínica, com destaque para a saúde mental e a mudança comportamental. Durante a pandemia, vimos este potencial ao vivo: as consultas de telemedicina aumentaram exponencialmente e a tecnologia vestível ajudou a monitorizar doentes crónicos. Foi um salto inevitável, mas um salto que deixou muitos para trás.

De acordo com o mesmo estudo, os domínios menos explorados da saúde digital são equidade (16,7%) e eficiência de custos (25,9%). E é aqui que reside o grande desafio. Em Portugal, onde a literacia digital é baixa e o acesso à internet ainda é uma miragem em zonas rurais, as promessas digitais podem tornar-se ilusões perigosas. Quantos idosos são excluídos de consultas online por não saberem usar uma plataforma? Quantos doentes crónicos perderam o seguimento médico por não terem rede estável? A tecnologia, em vez de democratizar, agrava desigualdades quando ignoramos estas barreiras.

Este cenário obriga-nos a questionar: a quem serve, afinal, a saúde digital? Durante anos, a Medicina foi humanizada pelo contacto direto entre médico e paciente. Hoje, ferramentas de Inteligência Artificial (IA) leem exames com uma precisão quase sobre-humana, mas falham naquilo que nenhuma máquina pode replicar: o olhar atento, a escuta ativa e a compreensão do contexto individual de cada doente. A IA pode ser uma aliada, mas apenas se for integrada com ética, prudência e um foco inabalável no benefício real para o doente.

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Por outro lado, a formação dos futuros médicos tem de acompanhar esta revolução. Um médico que não compreenda algoritmos de IA, que não saiba validar a qualidade dos dados que utiliza, arrisca-se a ser ultrapassado. A Medicina, aquela dita digital, exige competências novas, mas não pode esquecer as antigas. A humanização do cuidado não é um luxo; é uma necessidade ética. A tecnologia deve ser um meio para tratar pessoas, não apenas sistemas.

Portugal tem todas as condições para liderar este processo. O nosso sistema de saúde tem talento, inovação e vontade para integrar a Inteligência Artificial e as ferramentas digitais nos cuidados médicos. Mas este avanço só terá valor se for acompanhado por políticas públicas robustas que combatam a exclusão digital, invistam na literacia tecnológica e garantam que ninguém fica para trás. A tecnologia é um excelente instrumento, mas o seu sucesso depende de nós.

A Medicina digital não precisa apenas de mais dados ou algoritmos; precisa de uma visão clara e corajosa que coloque o doente no centro do processo. Precisamos de um compromisso firme com a equidade, a eficiência e, acima de tudo, a humanização dos cuidados. De que serve uma tecnologia que salva sistemas, mas esquece pessoas?

No final, a verdadeira pergunta é esta: queremos uma Medicina que cure números ou uma Medicina que verdadeiramente cuid(e) de pessoas?