Os meus artigos anteriores focaram-se nos inconvenientes do actual sistema eleitoral português mas não sobre possíveis soluções. Para se perceber melhor as soluções que têm sido debatidas nas décadas mais recentes convém dominar alguns conceitos sobre sistemas eleitorais. Esses conceitos são o foco do presente artigo.
Um sistema eleitoral é uma coisa multi-facetada e efectuar uma reforma eleitoral é uma tarefa complexa. Isso não se deve somente à delicadeza do tema, ou aos conflitos de interesse – seja entre eleitores e eleitos, ou entre forças políticas de diferentes dimensões ou enquadramentos. É também porque um sistema eleitoral tem de equilibrar várias frentes técnicas, todas elas importantes para a democracia. Por isso, os entendidos fazem sempre notar que não há sistemas eleitorais perfeitos. Isto significa que, qualquer que seja o sistema em vigor, haverá sempre descontentes e quem se sinta prejudicado. Infelizmente, isto significa também que, qualquer que seja a proposta de reforma, os que têm má vontade para com ela, mesmo que por motivos inconfessáveis, têm sempre facilidade em “encontrar ponta por onde se lhe pegue”. É pois conveniente dominar bem a problemática para perceber quando um argumento contra uma proposta parece ou não fazer sentido. É também importante saber construir soluções bem pensadas e sem debilidades graves, pois se estas existirem, serão imediatamente exploradas por aqueles que preferem que nada mude.
Três factores são sempre mencionados para avaliar sistemas eleitorais e a que estes deve atender: (1) representatividade, (2) proporcionalidade e (3) governabilidade. A esses, entendi acrescentar ainda os factores (4) limiar de entrada para o primeiro deputado, (5) equilíbrio entre círculos e (6) a possibilidade de negar o voto a determinado candidato. A seguir analiso cada um dos seis.
Factor 1: representatividade
Talvez a melhor maneira de introduzir o conceito da representatividade aos portugueses, é sublinhar que não a têm! Podíamos dizer, que a representatividade tem a ver com o processo de escolha dos representantes e quem é representado. Os representados podem ser um segmento social específico, se uma parte do território, ou uma ideologia política. A representatividade é, pois, em geral, tida como uma característica necessária para um regime ser considerado democrático. Nos tempos modernos, é relativamente consensual que a entidade que é desejável que seja representada são os cidadãos. Mas em Portugal, são as chefias partidárias. É assim, porque os representados são necessariamente os que têm o poder de escolher o representante. Se não têm esse poder, não são eles os representados. Num sistema de listas fechadas e bloqueadas, os representados são os que elaboram – e ordenam – as listas de candidatos a cada círculo.
Factores 2 e 3: proporcionalidade vs. governabilidade
A proporcionalidade refere-se ao grau com que um sistema faz corresponder uma dada percentagem dos votos a uma percentagem de deputados no parlamento. Governabilidade mede até que nível um sistema produz um elenco parlamentar capaz de sustentar soluções governativas estáveis.
Ao longo do tempo, os eleitores habituaram-se a ter cada vez mais escolhas nas suas vidas quotidianas. Por isso é natural que tenha a mesma atitude para com as escolhas com que são confrontados nas eleições. É natural que com o passar do tempo a votação do eleitorado se disperse cada vez mais por múltiplas escolhas partidárias. Aqui, verifica-se um problema: há um conflito entre proporcionalidade e governabilidade. Quanto mais proporcional é um sistema eleitoral, pior é a governabilidade (supostamente), pois mais fragmentado tendem a ser os elencos parlamentares resultantes. Consequentemente, mais difícil se torna a formação de governos estáveis e duradouros. Por exemplo, Israel é conhecido por ter problemas a esse nível.
Para evitar uma excessiva fragmentação dos elencos parlamentares e em nome da governabilidade, alguns países adoptam sistemas maioritários, que conferem ao partido ou partidos mais votados um número de deputados mais que proporcional aos votos. Um exemplo é o Reino Unido (United Kingdom – UK), porque é exclusivamente baseado em círculos uninominais a uma só volta. No UK, é muito raro o partido mais votado não possuir uma maioria absoluta de deputados (mas já aconteceu).
Houve um tempo em que os sistemas maioritários eram considerados uma alternativa válida aos sistemas proporcionais. Hoje já não será tanto assim. Em outros tempos, era considerado uma vantagem que o leque de escolhas fosse relativamente simples – algo que os sistemas maioritários propiciam. Porém, na vida moderna as pessoas estão habituadas a analisar múltiplas alternativas com base em múltiplos critérios – tarifários, moradias, automóveis, produtos financeiros, etc. Não vêm razão para que não seja assim também com partidos políticos.
Os sistemas maioritários sofrem de alguns problemas intrínsecos. Para começar, os sistemas maioritários impõem uma forte barreira à entrada de novos partidos e consequentemente colocam fortes entraves à renovação do espectro partidário – tanto a curto como a longo prazo. Por outro lado, nada impede que o próprio eleitorado contrarie a natureza maioritária, aumentando a sua dispersão do voto, algo que nos tempos mais recentes temos visto acontecer no próprio UK, bem como em Países tão diversos como Alemanha, Grécia, Espanha e Itália. A partir de um certo nível de fragmentação do voto, o sistema eleitoral não pode ser a “solução”, pois a imposição duma maioria artificial arrisca-se a ferir os princípios da própria democracia. Assistimos a esse risco no UK e na França. Há soluções a nível de outros componentes do sistema político que podem incentivar à formação de coligações pós-eleições.
O sistema português pertence ao outro grupo dos sistemas eleitorais – os proporcionais. Em Portugal, é consensual que o sistema eleitoral deve ser proporcional, querendo isso dizer que a uma dada percentagem de votos deve corresponder um elenco parlamentar de dimensão próxima, mesmo que a correspondência não seja perfeita. Na prática quase nunca é. Esse princípio está plasmado na constituição portuguesa – Nº5 do artº113.
No nº12 de revista de assuntos eleitorais, André Freire faz notar que o historial de resultados eleitorais do sistema português sugere que este possui um compromisso entre proporcionalidade e governabilidade relativamente bom. Escrevendo antes da eleição de 2015-10-04, Freire faz notar que o facto de nunca ter havido coligações governamentais à esquerda deve-se à falta de entendimento das forças políticas de esquerda, não ao sistema eleitoral. O posterior advento da Geringonça veio a mostrar que Freire estava certo.
Factor 4: Limiar de entrada para o primeiro deputado
O limiar de entrada refere-se à percentagem de votos a partir da qual uma força política pequena começa a eleger deputados. Se o limiar é muito elevado, o sistema arrisca-se a empobrecer a democracia porque impõe uma barreira demasiado difícil de ultrapassar por parte de novas forças políticas (e novas ideias, novas prioridades).
Vários sistemas europeus impõem uma percentagem mínima de votação para que determinada força política possa eleger deputados. Uma tal “cláusula barreira” é vedada pela constituição portuguesa (Nº2 do artº 152º). Porém, existe uma outra barreira na prática: a magnitude do círculo eleitoral. Quanto menor for o círculo, mais alta é essa barreira. No círculo de Portalegre (2 lugares), um partido só tem garantia de eleger um deputado se tiver pelo menos um terço do total de votos nesse círculo.
Factor 5: Equilíbrio entre círculos eleitorais
O equilíbrio entre círculos, responde à questão de se o sistema responde às votações duma maneira uniforme em todo o território, com os diversos círculos eleitorais a conferir aos eleitores condições equivalentes ou próximas, independentemente de onde estão recenseados. Para um sistema como o português ser equilibrado, seria preciso que os diversos círculos tivessem todos o mesmo número de lugares e correspondendo ao mesmo número de votantes. Isso não é fácil de garantir a longo prazo, pois a distribuição demográfica evolui ao longo do tempo. Porém, isso não justifica o extremo desequilíbrio da estrutura de círculos eleitorais de Portugal. Mesmo em 1975 já havia significativos desequilíbrios. O que foi feito e, 1975 foi simplesmente fazer coincidir os distritos com os círculos eleitorais. Pior, os desequilíbrios foram piorando ao longo do tempo.
Globalmente, o sistema português é aproximadamente proporcional – embora vários sistemas europeus tenham um factor de proporcionalidade um pouco melhor. O grande problema está no extremo desequilíbrio entre círculos diferentes. Num extremo temos Lisboa, com 48 lugares e no outro extremo temos Portalegre com dois. Assim, os círculos de Lisboa e Porto são os grandes “pontos de entrada” no parlamento para qualquer novo partido. A experiência recente de partidos como o PAN, o Chega, a Iniciativa Liberal e o LIVRE confirmam essa suposição.
No mesmo número da revista Eleições (pág.47), André Freire faz notar que quando se usa o método de D’Hondt, o factor de proporcionalidade num círculo eleitoral pára de aumentar a partir dos 20 lugares. A partir desse nível, apenas o limiar de entrada continua a baixar quando o círculo aumenta.
Factor 6: Poder de negar o voto
Por fim, menciono mais um factor que muitos artigos e compêndios académicos parecem menorizar, mas que eu considero ser importante: a possibilidade de se poder negar o voto a candidatos individuais sem se ser forçado a desistir de votar na força política escolhida. Os sistemas de lista fechada não conferem esse direito, mas os sistemas exclusivamente baseados em círculos uninominais (e.g., o do UK) também não. Note-se que a “força política” não tem necessariamente de ser um partido, apesar de em Portugal isso ser imposto por um artigo da constituição (151º) – mais outro sinal claro de partidocracia do sistema político português.
Para perceber por que razão o factor negar o voto é importante, imaginem que numas eleições inglesas, o candidato da força escolhida é membro de uma sociedade secreta e iniciática. Suponha ainda que muitos eleitores ingleses não querem eleger candidatos pertencentes a esse tipo de sociedades. Num sistema exclusivamente baseado em círculos uninominais, não é possível negar o voto a esse candidato sem se ser obrigado a desistir de votar na força política dele (no UK, os cidadãos podem concorrer sem partido – tal como na França, Alemanha e muitos outros países europeus). É uma espécie de “chantagem” que constitui o principal inconveniente de alguns sistemas baseados em círculos uninominais. Um próximo artigo será dedicado a sistemas baseados em círculos uninominais. Por estranho que pareça, há bastante variedade entre tais sistemas e é mesmo possível a um tal sistema ser mais proporcional que o português, como é o caso do sistema alemão.